Por Wilson Solon.
Há 30 ou 40 anos, “Luzes, Câmera, Ação!” era apenas um slogan que incendiava a imaginação do público e as expectativas “ingênuas” dos jovens cineastas da altura. Além disso, os jovens dispõem da onipotente sensação de propriedade do futuro, que os cineastas ainda são capazes de ampliar quando revisitam o passado. E sem prejuízo das múltiplas atribuições do presente: a criação de outros seres “viventes”, a condução dos atores que os interpretam, a submissão dos espectadores…
Com tantas prerrogativas quase divinas, o ego (da virtual totalidade) dos diretores, em seu mundo ficcional, só encontraria dois paralelos no mundo real, que atravessaram essas quatro décadas como efetivos ‘diretores de narrativas’ de amplitude nacional: o Lula e a Globo, com seus respectivos discursos vitoriosos (ou parcialmente) e cada vez mais “visíveis”, para o bem ou para o mal.
Mas ao longo dos anos 80, Lula se transmutava cada vez mais em si mesmo: do grande líder sindical (recém-fundador do PT, em 1981) no deputado-constituinte que terminou a década como candidato a presidente; derrotado afinal por um super-herói global – o Collor de Mello. A Rede Globo, por sua vez, era já a bosta que continuaria a ser. E eu renunciaria aos cinco anos já cursados de uma faculdade de engenharia (na UFRJ), para me dedicar à utopia dos sons e imagens.
Narrativas próprias
Embora ainda fios soltos, esses três personagens – o Lula, a Globo e eu – seremos os fios condutores deste retorno no tempo. Quanto a mim, ainda houve tempo de terminar a década de 80 formado em Cinema e Jornalismo (desta vez pela UFF) antes dos 30 anos, e com dois troféus no currículo de cinema – o de melhor montador (era como se chamava o editor de imagens) e o de melhor diretor.
É bem verdade que os ganhei por dois curtas-metragens. Contudo, premiados em festivais nacionais de prestígio (como o de Brasília e o Rio-Cine, respectivamente); e por trabalhos “em película, não em vídeo!”, como os cineastas e cinéfilos em geral nos orgulhávamos de salientar.
Mal sabíamos o que estava reservado ao “reinado” da película: já a curto prazo, pela sanha assassina do Collor – contra a Cultura e qualquer projeto de ‘Cinema Brasileiro’; a médio prazo, em decorrência da explosiva evolução tecnológica do vídeo (algo compreensível, a posteriori, porém inimaginável na altura).
Imagens “de vanguarda”, porém, só as do próprio presidente fantoche, em suas impróprias performances olímpicas; tanto por aviltar o bom gosto dos espectadores quanto pela equivocada vulgarização da imagem de um governante. Bastava vendê-lo no Fantástico para que o público da Globo o comprasse. Em suma, pra quê Cinema, num país já tão collorido?
Ainda voltaremos ao contexto cinematográfico, mas o foco agora é outro. A rigor, serão três, repito, sobre movimentos díspares e (para que não restem dúvidas quanto às disparidades) sob vários pontos de vista: ora “virtualmente” inconciliáveis – como o olhar hiper-realista do Lula e as ilusões de ótica da Globo – ora plenamente compatíveis, embora distanciados no tempo e no espaço – como a trajetória do ex-presidente e a deste “ex-cineasta”.
Entretanto, como falamos de distintas “perspectivas” (também no sentido literal, através da TV), deixo claro que, como observador dos outros dois “personagens”, só farei comparações comprováveis na realidade, e jamais juízos “pessoais”; sobretudo pela impropriedade de se comparar a pessoa humana do ex-presidente com a mais impessoal e desumana “entidade” empresarial de nosso País.
Lula e Globo como narrativas únicas
Além do que permanece invisível nas telas da Globo, e do que já é mais do que notório na reputação do Lula; ou melhor, além da falta de provas visíveis para as ilações da emissora contra o maior dos brasileiros; ofereço uma terceira perspectiva, de alguém que também se mede pela régua utilizada para os dois ícones nacionais. Mas não o faço por vaidade nem por modéstia, já que não tenho a generosidade e entrega pessoal do Lula nem a perversidade e ambição da Globo.
O que me fez concluir que o meu ‘ponto de vista’ era tão singular (quanto os outros dois) nunca seria uma pretensiosa amplitude da vista, mas a singularidade do ponto (em que me coloquei desde os idos de 80). Nos próximos depoimentos, voltaremos à trajetória profissional deste criador de imagens, sem precisar interromper o percurso atual.
Nos anos 90, basta resumir as regras gerais da outrora chamada “classe cinematográfica” – e de fato acreditávamos neste conceito! Em suma, a sinistra dobradinha Collor in Globo (ou Globo in Collor), como foi dito, começou por eliminar os últimos vestígios do que na verdade eram já os escombros do cinema nacional.
No final dos 90, a não menos desastrosa demolição da Rede Manchete de Televisão atirou a pá de cal sobre (o que alguns também acreditávamos ser) o último refúgio de uma “linguagem cinematográfica” na TV. Lamúrias de artistas à parte, somente essas duas hecatombes representaram, para os meios audiovisuais, o desaparecimento de centenas de postos de trabalho especializados, de artistas e técnicos; ou talvez milhares, com os demais funcionários defenestrados pelos órgãos estatais de fomento às atividades culturais (a começar pela Embrafilme).
A nossa “imagem de nação”, (como hoje) não apenas em sentido figurado, reduzia-se a uma brutal despersonalização nacional; e uma tragédia individual, para cada criador ou espectador desprovido de suas imagens identitárias (sobretudo no melancólico período FHC). Essa perfeita esquizofrenia, não obstante, foi sendo diluída e apresentada como uma longa novela, ou divertida farsa televisiva, cujos capítulos estão prestes a atingir o seu clímax, ou anticlímax (na verdade, chamá-lo-ia de “temerário epílogo”).
Narrativas laborais opostas
Não por acaso, o fenômeno – maquiador da realidade – também se revelou em sua versão trabalhista. Diante da débâcle, a outrora utópica “classe” dos técnicos e artistas não tardou a exibir suas incoerências intrínsecas, como de fato se espera que reajam os seres humanos (e os operários das imagens) surpreendidos por ataques terroristas: com a extinção da categoria, os veteranos do cinema aposentaram-se ou morreram (alguns, de desgosto); os mais jovens mudaram de ofício ou correram pra televisão.
Analogamente, os que pouco mais tarde também se sentiriam órfãos da TV Manchete, em sua grande maioria, passaram a engrossar o coro e os sonhos dos demais espectadores passivos (ou hipnotizados) que sempre buscam consolo materno nas cantilenas de ninar da TV Globo. No caso em questão, o “colo” desejado era quase literal, por meio de algum contrato de trabalho com a gigantesca emissora carioca.
Na prática, o que se via era a (de)formação do monopólio de dimensões “globais”, ao qual se submetiam também os profissionais da área – quer por idolatria, quer por medo do desemprego – enquanto a Globo ia recolhendo os seus eleitos nos escombros de um mercado literalmente “ficcional”: onde os salários já não decorrem da livre concorrência nem os indivíduos dispõem do livre-arbítrio para buscar alternativas (por “virtualmente” inexistentes).
A rigor, reitero que os brasileiros já não se viam na TV havia tempos (embora fossem convencidos do contrário). A “usina de poder” – nas palavras de seu fundador – dominava o mercado audiovisual segundo suas necessidades empresariais e recriava-o “à sua própria imagem” – esta, por sua vez, foi sempre revendida aos incautos como a antítese de si mesma.
Ou, curiosamente, como a síntese das vilãs de suas próprias novelas: a providencial “acolhedora” dos desempregados, na verdade, era quem tramava (ou poderia ameaçar de novo) atirá-los à rua da amargura. Como um imenso espelho da realidade, a Globo promoveria a mais astuciosa inversão de imagens de que se tem notícia (fora de Hollywood, ou das igrejas).
Com “efeito” (como também ocorre nas religiões dogmáticas), o império reduzia os níveis coletivos de consciência na mesma medida em que ampliava o temor e o fascínio pelo seu poder irrestrito. Quanto ao “mercado” audiovisual em si, ora mais fascinados, ora mais temerosos, os próprios técnicos e, sobretudo, os artistas globais (pela exposição pública) tornaram-se cúmplices involuntários dos desvios, laborais e mentais.
Mas também suas maiores vítimas. Hoje, além da perda da consciência política, esses e outros entusiastas do “padrão global” simplesmente ignoram o que seria viver – e de fato ver ampliar o seu mercado de trabalho – nas sociedades em que a concorrência dos meios audiovisuais é realmente livre e democrática. Como regra.
E onde as exceções (como as censuras ideológicas ou os contratos de “exclusividade de imagem” com alguma emissora) não são apenas raras, mas expõem o primeiro de nossos paradoxos: toda uma classe de atores e comunicadores – que sobrevivem e detêm a posse da própria imagem – ainda se vê obrigada a aplaudir uma “proibição consensual” de negociar ou sequer de exibir sua imagem nas emissoras “concorrentes” (que no Brasil não o são nem lhes permitiriam ser).
Não fosse o bastante, os que se supõem “aliados ideológicos” do nosso segundo (e múltiplo) paradoxo – o neo(?)-liberalismo(?)-global(?) – na verdade ajudam a corroer a própria criatividade e, por ironia, o pilar estrutural do próprio capitalismo: a livre iniciativa.
Nas últimas décadas, a esquizofrenia dos brasileiros “medianos” (com mais propriedade, mediáticos) se materializou com clareza: por um lado, na covardia de enfrentar, por outro, na vaidade de consagrar o próprio algoz. Como na conhecida Síndrome de Estocolmo, da qual a outra variante é o ‘complexo de vira-latas’ – tão desprezível para o Lula.
Na política do período ocorreu o mesmo fenômeno, embora ninguém possa acusar o Lula de ter sido contaminado. Ao contrário, ninguém foi mais derrotado do que ele (sem jamais ter sucumbido à veneração) por sua inimiga maior.
Não obstante, a fraudulenta perseguição da Globo conseguiu apenas adiar, mas não evitar, que o Brasil afinal elegesse, já no princípio deste século, o mais célebre presidente de sua história, por tudo o que fez pelos oprimidos.
Por outro lado, se cabe censurá-lo (e a Dilma, ao PT e aliados) pelo que se deixou de fazer, Lula abdicou do seu legítimo direito (ou antes, do dever) de impor limites ao terceiro paradoxo tupiniquim – ou ao serviço público que mais desserviços prestou à opinião pública. E à própria democracia. Essa ingênua omissão passaria as faturas que todos continuamos a pagar.
Brizola
Porém, chamo a atenção também para o paradigma inverso, ao longo do mesmo período, que melhor representou o alto preço cobrado a quem denuncia o imperialismo global: o insubstituível Leonel Brizola. Não por acaso, covardemente condenado a um quase ostracismo ainda em vida; embora cada vez mais lembrado, após a morte, por ter sempre submetido suas firmes convicções à imprevisibilidade do jogo democrático – mas nunca à Rede Globo.
Brizola, aliás, foi um dos raros brasileiros da altura – senão o único – que teve a lucidez, a coragem e o desprendimento de brandir sua quixotesca indignação com a mídia burguesa (e hoje golpista), dentro do mundo político.
Fora deste, no entanto, voltarei ao ponto de vista que reivindico, desde a juventude, como igualmente singular (ainda que nada original, entre tantos jovens brizolistas). Mas em prol da imparcialidade, também resumirei os infortúnios do audiovisual brasileiro, desde o fim do século passado, sob as luzes, as câmeras e as ações da própria Globo.
PRÓXIMO: 2 – SOB UM PONTO DE VISTA SINGULAR
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