25 – SOB O PONTO DE VISTA DA CRONOLOGIA HISTÓRICA

Por Wilson Solon.  

O GOLPE

Sempre haverá contestações (sobretudo da direita mais conservadora) quanto à relação sucessória entre o cristianismo e o capitalismo, a começar pela mais prosaica: o primeiro nos levaria à “morada de Deus”; já o segundo, apenas ao “mercado temporal”. Na teoria, portanto, já temos uma óbvia relação de continuidade: após desfrutarmos da felicidade material, ainda poderemos preservá-la na vida celestial.

Na prática, até mesmo os indivíduos mais abastados e fervorosos são obrigados a relativizar seus valores “absolutos”, quando observam que o seu Deus esqueceu de “abençoar” a maioria dos homens com a mesma fortuna. E a recíproca é igualmente verdadeira: a imensa maioria – de ricos ou de pobres – também se esquece de louvar a Deus com suas orações, com os dízimos, ou com a simples presença nos cultos e missas dominicais.

Os mais lúcidos constatam, ademais, que ambos os monopólios já denunciados – da fé e do capital – foram criados somente para o benefício das minorias que obedecem aos respectivos dogmas. Portanto, nem sequer em tese deveríamos atribuir essas duas obras a uma divindade onipotente, ou minimamente justa.

Monopólios e paralelismos

Seja como for, em sã consciência, ninguém negaria as extraordinárias semelhanças entre o cristianismo e o capitalismo, nos respectivos métodos e influências – no Brasil, sobre a virtual totalidade da população. Ainda assim, os modernos sofistas insistiriam que a harmoniosa coexistência do ‘fanatismo religioso’ com a ‘selvageria capitalista’ impediria que víssemos esta última como a sucessora do monopólio da fé.

Não obstante, como já o fizemos para o passado do ‘cristianismo planetário’, reavaliemos também os dogmas econômicos, para comprovar a efetiva submissão da fé – cristã ou qualquer outra – ao ‘capitalismo internacional’. E vale começar pelo contra-argumento já utilizado para o período medieval: por definição, dois ‘monopólios’ não podem existir em paralelo.

Por outro lado, tampouco neguei o paralelismo entre a fé e o capital, no medievo. De fato, como em todos os tempos, o ‘poder econômico’ já exibia quase todas as suas faces atuais – elitista, concentradora, transnacional (ou apátrida). Contudo, convém ajustar o foco sobre sua simbiótica relação com a Igreja Católica, à qual os mais poderosos governantes prestavam vassalagem. E não só pelas afinidades mútuas entre os “ricos de espírito”.

Por ironia, os próprios sacerdotes (representantes terrenos do poder “espiritual”) foram detentores das maiores fortunas da História. Via de regra, extraídas de alguma escravização – ora “apenas” das mentes, ora literal, pois chegaram a possuir seus próprios cativos. Mas sublinho, sempre em conluio com as ‘elites políticas’. Até que “algo” se alterasse nesse quadro – ou precisamente o que investigamos.

Para além das evidências cronológicas, há provas materiais da efetiva transição entre dois monopólios, a partir do Renascimento; ou seja, já conhecido o “mérito” das religiões dogmáticas pela paralisação do processo civilizatório, por todo o milênio anterior. Mas antes tarde do que nunca, as próprias componentes estruturais do espírito humano – sua razão e suas emoções – se encarregariam de uma reação natural.

Contudo, os progressos intelectuais e científicos são sempre mais lentos do que as reações emocionais (ainda que ambos sejam manipuláveis). Ao perceber o esgotamento de seu absolutismo milenar, a própria Igreja buscaria novos mecanismos de composição com os eventuais “rebeldes”. E talvez à exceção dos bandidos de fato (na matéria), ninguém mais do que os artistas traz (no espírito) a rebeldia contra as autoridades absolutas.

Nos estertores do período medieval, em que pesasse a já longa ausência de alternativas racionais, os artistas – pela própria predominância das emoções (sobre a razão) nas atividades artísticas – não desejariam nem precisariam renunciar a alguma fé que considerassem genuína. A Igreja, por sua parte, tampouco estava disposta a abrir mão de seu “poder espiritual” (na verdade, vale repetir, econômico e concentrador de riquezas, como em nenhuma outra entidade nacional ou política).

Não por acaso, vimos “renascer” (da Antiguidade Clássica) uma profícua aliança, para ambas as partes. Ou tão conveniente para os espíritos mais livres e criativos quanto para a instituição – milenarmente – aprisionadora das mentes e manipuladora das emoções. Assim a Igreja continuaria a iludir seus contemporâneos (a rigor, até hoje). Porém, desde então, através de poderosos e cultivados ‘mecenas’ (ainda que fossem os mesmos sacerdotes, bispos ou papas de sempre).

Não poucos “estudiosos” consideram que a explosão de criatividade renascentista resultou da “generosidade” da Igreja, uma vez patrocinada e executada “em nome da fé”. Na pior das hipóteses, as “novas imagens” da velha fé teriam liberalizado o sectarismo medieval, vigente sob o monopólio eclesiástico.

Na verdade, tratava-se da derradeira e desesperada estratégia – portanto essencialmente racional – de preservação dessa hegemonia. Já para outros ingênuos não clericais (embora comprometidos com as retóricas cristãs), a exuberância do movimento renascentista seria antes uma “manifestação espontânea” da psique humana.

Neste caso, o que explicaria que o seu epicentro fosse precisamente a Península Itálica? Alguma mutação genética teria convertido os italianos nos gênios mais criativos e produtivos do mundo? Ou terão acorrido em bandos, aos cofres papais, por mais uma obra do acaso?

Corrupção e Fé

Não precisaríamos recuar no tempo para encontrar as respostas “antropológicas”. Bastaria ir à Brasília pós-golpe, onde reconhecemos espécimes análogos, também do ponto de vista “fisiológico”: dos moralistas de ocasião, que se vendem em nome da “fé”, aos demais “liderados” pelo Temer, outro agonizante moral. Mas ainda o supremo gestor das verbas e patrimônios públicos.

Cabe aqui a ressalva de que os gênios renascentistas não eram obrigados a renunciar às suas convicções morais nem vocações naturais. Ao contrário, todos foram capazes de transformar a estupidez dogmática em beleza, em encantamento, em genuínas riquezas culturais. Além disso, as Artes representam de fato o “sacrossanto” – em seu sentido mais sublime – que não exige nem permite questionamentos pseudomoralistas (como os que voltam a ameaçar a liberdade mental dos brasileiros).

Já os aspectos psicológicos da questão podem ser resumidos na “imagem” ambígua, mas emblemática, do ideário renascentista: Leonardo da Vinci. Pela via emocional, o artista por excelência; pela via intelectual, o mais atípico representante do que chamamos de ‘arte racionalista’. Ao mesmo tempo, a síntese e a antítese desses dois séculos de transformações até então nunca vistas na história humana.

Como se sabe, Leonardo não só dividiu o seu tempo com as ciências, como incorporou os referenciais científicos às formas artísticas. Não fosse o bastante, ainda subverteu os paradigmas contemporâneos – políticos, morais, sexuais e religiosos – de inúmeras outras “formas”. Contudo, para além dos limites de suas (poucas) telas sacras, quase nada se pode afirmar acerca de sua suposta “fé cristã”.

Tampouco se costuma retratar a inusitada relação de reciprocidade de Leonardo com a Igreja: que o ignorou na mesma medida em que foi por ele ignorada. Ao contrário do que se supõe, pela opulência evidente, as obras de um gênio reconhecido ainda em vida não o protegeram de viver longos períodos (e morrer) praticamente na miséria, em relação aos artistas sob a “proteção” do monopólio da fé – a Igreja Católica Apostólica Romana.

Em outras palavras, seria quase absurdo imaginar que o duplo monopólio eclesiástico (financeiro e espiritual), no patrocínio às artes, não fosse visto criticamente por Da Vinci. Como de resto o duplo mecanismo psíquico – de qualquer ser lúcido – veria a Igreja: através da emoção, como um perverso manipulador da fé; através da razão, como um centro de agiotagem de artistas (ainda que bem-intencionados) em benefício dos interesses políticos e do “capital artístico” da própria Igreja.

Não seria insensato supor que Da Vinci se mantivesse à margem desta anomalia institucional em virtude de suas “visões proféticas” –  sobre o destino natural já previsível da Igreja. Porém, a posteriori, tais (des)caminhos históricos tornaram-se não só evidentes como forneceram as provas (materiais e filosóficas) da decadência católica, em favor do reinado do capital.

Imprecisões e foco

Além das controvérsias biográficas, o Renascimento (iniciado no 14º século) gera polêmicas também quanto à sua duração: para alguns, teria se estendido até cerca do ano 1700; para muitos outros (entre os quais me incluo, como observador de “imagens globais”), durou somente até princípios de 1500, como confirmaremos (ou pouco depois da descoberta das Américas, da morte de Leonardo da Vinci, e da Reforma Protestante).

E justifico: se qualquer “gestação” de dois séculos já pareceria incomum, um ‘(re)nascimento’ de quatro séculos seria no mínimo bizarro. Ou tão ridículo, por exemplo, quanto o golpe militar de 64 ter sido chamado (sobretudo pelas Organizações Globo) de  “revolução”, ou “movimento”, embora tenha parido uma sombria ditadura de mais de duas décadas. Além do próprio monopólio audiovisual de que falamos.

Ou, para ser mais preciso, a ditadura pariu seu monopólio audiovisual próprio. Eis a gênese da esquizofrenia global, em seu duplamente obscuro papel: o promocional, de uma anomalia militarista; e o autopromocional, da governança sem farda do “Marechal” Marinho.

Meio milênio antes, ao contrário, todas as vertentes do pensamento – filosófico, científico, político, ideológico, econômico, ético, humanístico – “renasciam” das trevas. Ainda assim, as artes plásticas foram o carro-chefe e o fio condutor da revolução no comportamento. Por serem inevitavelmente, ou literalmente, visíveis “através das imagens”.

Entretanto, ao longo do caminho – de mão dupla – do cristianismo ao capitalismo, convém analisar ainda os traçados mais ou menos caóticos das duas vias centrais – a econômica e a moral – que a princípio se confundiam; depois, ora se harmonizavam, ora pareciam divergir. Mas revelariam, por fim, a gênese de outros antagonismos modernos.

Retomemos, portanto, a ordem cronológica, sobre o caos aparente. Embora a Igreja Católica começasse por se utilizar das artes – atividade essencialmente emocional – para seduzir as mentes, reitero (e já ninguém duvida) que se tratava de uma estratégia racionalista de manutenção do seu poder político e econômico.

Contudo, por mais eficaz que fosse, em tese, essa “ponte para o futuro” da Igreja, sabemos que os apelos emocionais, na prática, não preservam seu poder de persuasão indefinidamente. Por definição, as “fórmulas mágicas” (assim como os dogmas, os juízos de exceção e as telenovelas) estão fadadas a desvanecer-se por si mesmas, uma vez esgotados o deslumbramento das plateias e a novidade dos ardis.

Na Arte renascentista, em particular, seus amantes, espectadores, e sobretudo os criadores, tornavam-se cada vez mais conscientes  – ou menos deslumbrados – para que permanecessem confinados aos estreitos limites das seduções religiosas. E a magia da beleza logo se irradiou de fato, para além de todas as fronteiras materiais e geográficas.

Porém, na direção inversa, a prática da simonia (ou a comercialização dos “favores divinos”) ainda ocupava um lugar de destaque entre as numerosas fontes de renda da Igreja. Para concluir, vale a pena reavaliar esses dois pontos de vista.

Economia e Moral

No plano estritamente econômico, sabe-se que a eclosão da Reforma Protestante, em 1517, representou o primeiro duro golpe no monopólio cristão do capital. Ainda que, sob o ponto de vista da moralidade, as contradições intrínsecas ao próprio capital já fossem mais evidentes do que as ambiguidades das artes, as incoerências dos dogmas, as duplicidades da política. Ou a dupla moral do cristianismo em si.

De alguma forma, tudo isso estaria representado nas 95 teses luteranas. Na impossibilidade de analisá-las, portanto, resumo-as no outro lado da mesma “moeda”: o fanatismo do próprio Lutero.

Embora vociferasse contra a “avareza e o paganismo” da Igreja, na verdade, o “reformador” mais famoso do paradoxo cristão era tão irracional quanto os católicos; tão ambicioso (além de um fornicador incontinente) quanto os machos capitalistas de todos os tempos; e tão reacionário quanto (quase todos) os demais líderes “protestantes”.

Não obstante, ressentidos pelos privilégios católicos, os capitalistas da altura viram no estridente monge alemão a esperança de usurparem – para si mesmos – o imenso patrimônio eclesiástico. Eis também a gênese de outros “desvios óticos” (ou estéticos) que investigamos no protestantismo; como proibir todas as ‘imagens artísticas’ ou ideias mais edificantes (ou menos insanas) do que os velhos dogmas católicos.

A partir de mentes como essas (outrora tão indignadas com as corrupções), hoje vemos os mesmos fluxos pornográficos que abastecem os sucessores ideológicos – neoliberais, neopentecostais, ou neopredestinados judiciais. Ora com os recursos dos mais pobres (de fato, de espírito, ou de direita), ora com os dízimos dos novos “escravos da fé”.

Todos, porém, doutrinados pelas mesmas “imagens” (das meras supressões às efetivas defraudações) da Verdade. Tal como vemos a cristianíssima Rede Globo de Televisão entulhar o País com suas pós-verdades; em estreita sintonia moral com os demais irmãos em Cristo (da Record, por exemplo); e com o mesmo ódio rigoroso contra o Lula – o demoníaco inimigo comum.

Voltaremos, portanto, com o mesmo rigor cronológico, às imagens suprimidas – dos telejornais, dos novos templos cristãos, ou da própria História – para que ressurjam pedagógicas e luminosas. Como foram as obras-primas renascentistas.


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