Por Wilson Solon.

Aos olhos deste ou de qualquer outro diretor de imagens e sons, não chega a ser difícil distinguir os que retratam dos que distorcem a realidade. No extremo oposto, entre os espectadores passivos e obrigados a ver o mundo, desde que nasceram, através dos filtros da Globo – o maior monopólio audiovisual do planeta – compreende-se, embora choque, que uma recente pesquisa (aqui) apontasse o Brasil como o 2º país (entre os 38 analisados) menos consciente da própria realidade.
Curiosamente, só não perdemos para a África do Sul. Não por acaso, onde também as elites brancas promoveram uma lavagem cerebral impiedosa, no tempo e no espaço, capaz de convencer a imensa maioria de negros (e igualmente a minoria branca) de que eles desempenhavam “naturalmente” um papel secundário na ordem social.
Na política, portanto, seria “virtualmente” impróprio culpar o nosso povo por não perceber de imediato as diferenças entre as meras pedaladas de um impeachment e um galopante golpe de estado; entre um legítimo combate à corrupção e um obscuro lawfare contra o Lula; entre os (really) ‘big’ brothers do parlamento, ou do judiciário, e dos patéticos reality shows da Globo – as “novelas da vida real”.
Não obstante essa deliberada demolição das fronteiras racionais entre fantasia e realidade, os mecanismos emocionais da psique humana seguem o seu curso, mais ou menos acidentado, segundo padrões universais. Até que as reações naturais se apresentem, em algum momento, proporcionais às ações (antinaturais, de que somos vítimas).
Eis o que prometi concluir, através dos protagonistas de uma eventual ruptura (a guerra civil ou outra qualquer), com exemplos concretos das regras – boas ou más – e das respectivas exceções. Começo por estas: de um lado, uma reduzida elite, tão minoritária quanto perversa, na imposição de suas regras à maioria; de outro lado, os intelectos conscientes e formadores de opinião, cuja missão consiste em ora retardar ora acelerar as inevitáveis reações emocionais da maioria (como podem escolher se omitir, é claro).
Desnecessário dizer que, nas duas últimas décadas, a Globo e o Lula foram protagonistas absolutos, nesses respectivos papéis. Prefiro, portanto, explicitar as hipóteses secundárias, no caso deste último ser expulso de cena, e a primeira considerar possível dirigir as reações do público, como sempre fez com sua própria plateia acrítica.
O primeiro equívoco deste silogismo consiste em ignorar o verdadeiro papel do Lula, que, antes de ser um mero (ou gigantesco) filantropo, foi até aqui o maior pacificador de nossa história (talvez como somente Mandela o tenha sido, na história recente). Em outras palavras, atear fogo ao bombeiro equivale a dar o pasto ao incêndio (como ocorreu na África do Sul).
O segundo equívoco é subestimar a força das consciências e dos direitos que, uma vez adquiridos, podem até ser ameaçados, na matéria, mas nunca serão arrancados da memória, como supõem nossas absurdas elites. O que equivaleria, absurdamente, a empurrar os negros de volta às senzalas, os gays de volta aos armários, as mulheres de volta às cozinhas, e o povo de volta à miséria. Sem reações nem insurgências.
Os mesmos equívocos foram cometidos na gênese do golpe (cuja anatomia, no entanto, já é bastante conhecida) e explicam também a sua rápida decomposição orgânica. A questão é saber até quando cada cidadão estará disposto a respirar seus fétidos miasmas, ou decidirá vestir a máscara contra os gases (lacrimogêneos incluídos) e partir pra cima dos mortos-vivos.
Aqui começam – e deveriam terminar – as controvérsias pseudomoralistas alimentadas pela direita, que também as esquerdas têm pudor de enfrentar. Já não falo sequer das beligerantes censuras artísticas, dos falsos combates à corrupção, ou das dissimuladas táticas de lawfare, mas da efetiva declaração de guerra; cujos documentos formais, no entanto, nunca serão apresentados, visto que esses zumbis adotam precisamente a traição como principal estratégia de ação.
As reações virão, inevitavelmente, porque as emoções combustíveis já foram desafiadas para além dos limites suportáveis por cada vez mais brasileiros. Contudo, reitero que compete às esquerdas decidir se organizarão suas tropas ou esperarão que elas sejam dizimadas, em meio ao caos. Analisemos, portanto, os possíveis campos de batalha.
Nos grandes incêndios florestais, por exemplo, atirar-se de peito aberto contra um adversário tão poderoso raras vezes é mais eficaz do que se antecipar a ele, vale dizer, observando seus movimentos e queimando antes a vegetação em torno das construções que se pretende preservar.
Também no terreno político, preservar a democracia – na hipótese de uma eleição vedada a seu principal candidato – parece óbvio (quando não um pleonasmo) que deveria implicar na deslegitimação prévia do que já é ontologicamente ilegítimo. Na prática, caso se confirmem as ameaças, a primeira decisão a ser tomada deve ser o efetivo boicote às urnas, ainda que os oportunistas se oponham à ideia (alguns, na própria esquerda).
No terreno jurídico, analogamente, já foram diagnosticadas as patologias contagiosas e as consequentes (a rigor, inconsequentes) e sucessivas ameaças ao princípio constitucional da presunção de inocência, até “provas” em contrário (embora já dispensáveis por essas bandas); ou até que se esgotem todos os recursos às instâncias “superiores”, que na verdade já se mostraram tão inferiores quanto os bandidos – comprovados – aos quais tem sido concedida a liberdade de continuar a escarnecer da cara do povo.
Nem seria preciso lembrar os demais casos de humilhações públicas – especialidade da Globo. Como aos três últimos ex-governadores fluminenses (um acorrentado pelos pés, outro torturado na própria cela, a outra, cuja intimidade foi exposta em rede nacional). E tampouco nos cabe o papel deixado vago pela Justiça – de distinguir os cidadãos honestos dos meliantes – mas sim denunciar qualquer afronta aos direitos humanos, reservados a todos os membros da espécie a que pertencemos.
Nesse cenário dantesco, somente visto nas ditaduras e guerras civis “convencionais”, ainda assim, nenhum agente policial, procurador, ou magistrado, contaminado pela indiferença ou pelo ódio, jamais conseguirá suprimir das leis, nem das consciências humanas, o mais elementar e sagrado princípio do Direito – à legítima defesa.
Insisto, portanto, na responsabilidade das esquerdas em geral – e do PT, em particular – de diferenciar com urgência a barbárie “legal” da contraviolência legítima. Não proponho, evidentemente, que nossos parlamentares incluam a luta armada em seus discursos, nem qualquer outro pretexto para que sejam trancafiados por incitação das massas, antes mesmo que a guerra se inicie oficialmente.
Mas sugiro que deixem explícito, para os golpistas, que todos – e não só o nosso lado – corremos os mesmos riscos. Alguns são “toleráveis”, pois já foram assimilados pela selvageria do establishment nacional, ainda que sejam paradoxos tão insolúveis quanto os próprios fundamentos do capitalismo internacional que subjuga o País.
Refiro-me, sobretudo, aos grupos sociais que já trazem uma bomba em lugar do cérebro; e o ódio patológico, antes de qualquer ideologia, como expressão de suas respectivas indignações com o mundo: entre os mais pobres, os “marginais tradicionais”, que povoam as cadeias e favelas; entre os mais favorecidos, os eleitores do Bolsonaro, por exemplo.
No entanto, para a imensa maioria dos cidadãos que ainda acreditam nas boas regras, as esquerdas parecem fugir do desafio aparentemente paradoxal – de “organizar a violência” – pois temem ser acusadas pela autoria de algum movimento subversivo que, na verdade, já foi inventado (dissimuladamente) e posto em prática (agora já abertamente) pela direita.
Como se alguém pudesse ignorar que o primeiro “cadáver ideológico”, prestes a surgir, com ou sem a autorização da esquerda, será “fatalmente” debitado na sua conta, pelos fascistas. Melhor, portanto, antecipar-se ao incêndio anunciado; e autorizar, moral e filosoficamente, que a indignação popular ocupe o lugar que lhe cabe nessa guerra ainda surda, mas cada vez mais desigual. E comece a queimar o mato, preventivamente.
Já não me refiro às aguerridas militâncias ideológicas, que ao longo da História sempre souberam utilizar a mesma premissa dos repressores (‘o segredo é a alma do negócio’). Falo dos imensos contingentes populacionais cuja indignação, mais cedo ou mais tarde, se transformará em revolta aberta. E não os converterá em heróis, senão em vítimas anônimas, como sempre foram.
Em suma, penso que se deveria falar cada vez mais da guerra civil como uma hipótese real. Não como ameaça, mas como a contra-ameaça incluída no conceito de legítima defesa. Na pior das hipóteses, é como se deve lidar com os covardes; que, via de regra, ignoram as reações porque simplesmente as desconhecem. Ou pensariam duas vezes antes de impor suas más regras a uma sociedade inteira.
Este papel entretanto já não cabe ao Lula, por motivos óbvios. De sua parte, a desobediência civil já foi explicitada, com a coragem habitual de quem não é apenas o maior líder de massas do Brasil (e do planeta), mas antes, a primeira vítima das perseguições insanas, como há muito não se viam no mundo civilizado.
Por fim, retorno às especulações referidas no início desta série, de que a guerra civil não passaria de uma “profecia” oriunda dos desejos pessoais e sanguinários deste observador. Uma vez mais, sim e não. Em particular, como cidadão carioca, confesso que a cada golpe recebido dos temerários quadrilheiros, de fato tenho ganas de esquartejá-los. Mas tenho também os meios de educar esses impulsos, a começar pelas catarses escritas.
E não. Não penso que detenho a exclusividade da indignação. Ao contrário, em todos os meios sociais, ela já se revela imparável; em parte, porque todos se veem a caminho do abismo; por outra parte, porque não vemos os freios, nem nos golpistas nem nos indignados. Portanto, reafirmo as previsões iniciais e os temores gerais (que comprovadamente se seguiram). Talvez só falte comprovar as conclusões.
Seja como for, tampouco temos clareza dos próximos ataques incendiários. E nem dos eventuais bombeiros. Na ausência do Lula, não sei quantos defenderão ou contribuirão para uma revolta social. Apenas é possível conhecer um pouco da realidade histórica e da psicologia humana; traduzi-las para a nossa pátria mãe, tão gentil quanto violenta; e aguardar o desfecho inusitado. Ou surreal, como o próprio Brasil.
É como venho tentando explicar, aos meus amigos estrangeiros, que a desconcertante passividade dos brasileiros pode ser o oposto do que parece. Assim como nossos ditadores dispensaram as fardas (até aqui) para dar um golpe; nossos juízes não precisam das leis, para apoiá-lo; e nossos fascistas em geral – políticos, religiosos, econômicos (mas também militares) – já não ostentam símbolos anacrônicos, como em outras guerras. Basta-lhes o egoísmo e o ódio de classe.
E insisto que a explosão é só uma questão de tempo. Spoilers à parte, portanto, os “fins” possíveis para a nossa guerra civil são tantos quanto permitam os fios já identificados – literalmente soltos e, por dramática ironia, ainda mais numerosos se o Lula estiver preso. Ou inelegível.
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