20 – SOB O PONTO DE VISTA JURÍDICO-MIDIÁTICO

Por Wilson Solon.  

O GOLPE

Dada a conjuntura “de exceção” em que se encontram os objetos, voltemos ao início do imbróglio e reposicionemos nossas câmeras. Como faz a mídia televisiva, que vê a “justiça”, que vê o Lula; ou, na perspectiva inversa, como o Lula veria um juiz provinciano que é visto por uma emissora de televisão que nos vê a todos como idiotas.

O magistrado em questão não ignora que é observado por sua plateia cativa – do Direito e da Direita – mas antes, pela própria emissora que o promoveu ao estrelato. Para muitos, parecia um hábil exercício de equilíbrio, digno dos aplausos de fato recebidos por Sérgio Moro. Exceto porque todas as aparências eram enganosas, e este juiz somente parecia ser equilibrado.

Até que sua ausência glacial de sentimentos revelasse uma personalidade vaidosa, quase psicótica, que a princípio se assemelhava apenas a qualquer magistrado inepto. Mas ele era também um mau ator. A rigor, um dos piores já produzidos pela Rede Globo.

O primeiro paradoxo

Sabemos que inúmeros canastrões já conseguiram equilibrar-se, por algum tempo, com seus glúteos no colo da emissora, de costas para a ala esquerda e a sorrir para a ala direita da plateia. Cedo ou tarde, porém, nenhuma celebridade escaparia aos apupos, e muito menos um juiz poderia evitar a desconstrução de sua imagem de integridade e imparcialidade, nessa pornográfica posição.

Virtualmente impossível, no entanto, seria enquadrar o Moro e o Lula no mesmo plano, pela própria imagem (se me permitem o trocadilho fácil) de uma antítese “moral” “ululante”: à direita de cena, as “razões” de Moro para golpear a dignidade humana; à esquerda, as emoções espontâneas das multidões, oferecidas e recebidas por Lula.

E não seria menos inócuo comparar a consistência das bases em que se apoiaram as respectivas famas. Eis precisamente o paradoxo que nos cabe investigar – o “magistrado famoso”. Conhecem-se alguns, pelas razões diversas: a notoriedade da inteligência, uma comprovada sabedoria nas decisões, ou a celebridade de uma longa carreira jurídica. Ainda assim, notáveis exceções.

Nenhuma delas aplicável ao indivíduo em questão. E todas, via de regra, construídas sobre o silêncio das sentenças, nunca antes sob o estardalhaço da mídia. Moro irrompe em cena como a imagem de tudo o que deveria estar oculto (ou nem existir) no corpo e na alma de um julgador: a vaidade pelas lisonjas recebidas, a bajulação aos poderosos (sobretudo do seu partido “de eleição”, o PSDB) e, um degrau abaixo, o desprezo e o ódio por réus e advogados.

O segundo paradoxo

Desloquemos agora nossas câmeras devidamente munidos dos instrumentos preventivos, seja para penetrar nos esgotos do golpe, seja para retornar sem o risco de contaminações mentais. Não obstante o que ainda possa emergir das estratégias “jurídicas” dos golpistas, elas já se revelaram tão assustadoras quanto eficazes nesse segundo paradoxo – a aliança de Moro com o monopólio de comunicação.

Não só como diretor de televisão, fui por toda a vida um observador compulsório (também como filho, sobrinho e irmão) de advogados ou procuradores federais. Ainda assim, admito ter apenas uma intimidade juvenil com as obscuridades do Direito. Porém o bastante para fugir de seus bastidores com invejável agilidade, se necessário. E sem me deixar intimidar pela retórica tortuosa de alguns seres que ali habitam.

Já como um experiente “procurador” (neste caso, literal) de locações de filmagem, conheci ambientes tão insalubres, para o corpo, quanto podem ser os roteiros absurdos, para as mentes humanas. E como são, de fato, os planos políticos de um obscuro juiz que busca a celebridade do artista; ou ainda, os ilegítimos interesses de uma emissora de TV, que busca legitimá-los através de um juiz usado como ator.

Se já me deparei com outras farsas igualmente bisonhas, nenhuma era tão medíocre e demolidora a ponto de causar tantos prejuízos a um povo e a um país inteiro. Inclusive após o seu retumbante fracasso de audiência no mundo real (e, por ironia, também na ficção que a retratou – A Lei É Para Todos –  o fiasco estrelado por atores da Globo).

A anatomia da parceria

Já conhecida a “esquizofrenia global”, analisemos o parceiro judicial e os termos do “acordo” entre ambos. Evidentemente, não falaríamos de contratos formais, mas de imagens que se convertem em provas – econômicas e sociais – do enredo destrutivo. No qual, paradoxalmente, nada parecia contrariar as leis e “virtualmente” tudo se comprovou injusto, ilegítimo e ilegal.

Mas antes de evidenciar o que se pretendeu ocultar, começo pela já evidente identidade entre os parceiros: assim como a Globo nasceu e cresceu sob a égide dos Estados Unidos, as referências emocionais e racionais de Moro explicitam sua absoluta subserviência (da “formação” profissional às viagens e citações repetitivas) ao que vem da superpotência capitalista.

Contudo, na impossibilidade de identificar nele um agente oficial da CIA, ou da NSA, restrinjo-me às suas atitudes lesivas ao Brasil, para doravante referi-lo, apenas genericamente, como o ‘agente Moro’. E mais uma vez, a exemplo do próprio acordo com a Globo, tampouco haveria contratos nem cargos formais na relação de um juiz entreguista com a matriz do capital predatório.

Passemos assim das evidências ao deliberadamente oculto, sob os mesmos “efeitos especiais” que retiram dos noticiários da Globo os eventuais méritos dos seus adversários previamente condenados. Essas “ausências flagrantes” (em que pese mais um paradoxo) estão igualmente presentes no curso da lava jato, cujas “abduções jurídicas” podem fazer desaparecer não só o ‘espírito das leis’, mas também as provas físicas contra os réus que Moro converte em inimigos.

As duplicidades laborais

Entretanto, o que de fato confundiu as retinas dos brasileiros foi a coincidência de atributos entre o ator disponível e o personagem idealizado pela Globo: de um lado, o tosco Sérgio Fernando (ainda que um membro da “elite” de Curitiba); de outro, o Super-Moro-Brás, um velho herói de “mãos limpas”, à italiana, agora repaginado para eliminar a corrupção do Brasil. Providencialmente, para a emissora, ambos eram juízes.

Mas aqui terminam as convergências entre as duas personas no corpo do mesmo agente. E ficam para trás a sobriedade e a isenção habituais dos magistrados de província, para entrar em cena, sob os refletores globais, o intrépido caçador dos corruptos contemporâneos (como eram, em seu tempo, os “colloridos” marajás). Nesse game eletrizante, contudo, há um complicador visual: os dois personagens não são excludentes, mas tampouco um personagem único.

No próximo depoimento, eliminaremos essas ilusões de ótica, pela ordem em que foram exibidas. Por ora, apenas concluo a relação de trabalho entre as partes, aparentemente enigmática, já que não existem documentos passíveis de questionamentos legais. Por outro lado, pela lógica das ficções televisivas, abrem-se novas perspectivas que merecem câmeras próprias.

Desnecessário observar que Moro não seria fabricado nem “comprado” pela Rede Globo, para desempenhar seu duplo papel. Em tese, seus salários e penduricalhos – majestáticos e vitalícios – sequer permitiriam suspeitas dessa natureza (embora, na prática, tenham surgido novas evidências de sua “dupla moral”, em vários sentidos, na outra parceria formada com aquela que ‘mora com ele’).

Mas reitero que jamais haveria crime nem provas de uma associação criminosa, na relação entre o agente Moro e as Organizações Globo. A propósito, outro ponto digno de nota é o cuidado matemático com que a emissora preserva o personagem, seja das críticas à sua imparcialidade, seja da hiperexposição de sua imagem.

Ao contrário do que possam crer os espectadores, apesar das sistemáticas referências ao seu nome, Moro apareceu relativamente pouco na Globo. Ou apenas o necessário para não tirar a credibilidade de seu poder inquisitorial. Este sim, previsto no roteiro para durar mais tempo. No entanto, do outro lado do espelho mágico, tudo se reflete com a absurda clareza de qualquer telenovela.

O vilão

A começar pelo eleito, por ambas as partes, como adversário comum. Com efeito, a partir do Lula, todas as evidências da parceria começam a materializar-se: quer nas citações ao “jornalismo” do Grupo Globo em sentenças do juiz Moro, quer no bombardeio ininterrupto das imagens persecutórias, que servem ao duplo objetivo de deslegitimar o inimigo e legitimar as bravatas dos outros agentes “morais” da Lava Jato (dos daltônicos ‘dallagnois’ do Ministério Público à cegueira seletiva da Polícia Federal).

Como ocorre nas demais novelas (que tampouco possuem compromisso com a verdade), a versão curitibana viu-se encorajada, entre outras pós-verdades, a substituir as leis por convicções pessoais e dogmas neoliberais. Portanto, a imagem mais próxima da relação de trabalho da parceria seria a de uma “terceirização ideal”: de comum acordo entre as partes, mas sem nenhum dos inconvenientes das leis trabalhistas nem implicações legais ou formais (como na freudiana “propriedade de fato”, não por acaso, projetada no “triplex do Lula”).

Assim também se fundiram e nos confundiram – sob a mesma imagem – um império televisivo, que sempre careceu de credibilidade, e um magistrado que, entre outros equívocos notórios, “pré-julgou” o seu próprio heroísmo com idêntica incompetência.

Em outras palavras, a parceria simplesmente ignorou que a fama de uma celebridade e a mera aparência de imparcialidade jamais fariam um juiz desprovido de caráter ser mais popular, por exemplo, do que um herói já consagrado por numerosas provas materiais – como o Lula.

Em última análise, entre o Moro e a Globo, ambos confundiram as regras da visibilidade com os pré-requisitos da notoriedade. E continuaram a delirar, acima das leis e do bom senso, até que os espectadores mais exigentes se cansassem das enfadonhas repetições de um mau roteiro.

De nossa parte, logo confirmaremos, com outras imagens, essa extraordinária afinidade – de propósitos, meios e fins – entre a “justiça” da Globo e a vaidade do “ator” global.

 


 

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