Por Wilson Solon.
Prosseguiremos o que chamei de optometria dos brasileiros. Com a ressalva de que o País visto da Europa, em meados da década passada, já “emitia” duas imagens sobrepostas, ou a radiografia de uma esquizofrenia “global” (ainda que somente aos meus olhos): uma nação e seus habitantes submetidos a uma nebulosidade quase imperceptível (hoje, porém, suficientemente comprovada).
Assim se explica por que não considerei a hipótese racional de voltar ao Brasil, embora as componentes emocionais conspirassem na direção contrária: o povo e o PIB brasileiros explodiam de felicidade durante os governos do Lula; assim como as imagens exportadas enchiam de orgulho os brasileiros d’além-mar – ora com o “consentimento”, ora apesar dos boicotes ainda discretos da Globo ao PT.
Vale lembrar que a emissora, então à beira da falência, seria “salva” pelo recém-eleito presidente. Ou pelo menos não receberia dele o tratamento merecido, não só pela mais endividada concessionária de um serviço público, mas por um monopólio de comunicação especializado em moldar as mentes do público (literalmente, à sua própria ‘imagem’).
Em suma, entre a bancarrota e a bancada do Jornal Nacional (de onde o novo presidente foi apresentado ao mundo), digamos que se estabelecera um acordo de “cavaleiros”, que na verdade não eram nem deixavam de sê-lo, sob os respectivos pontos de vista. Para a Globo, o Lula jamais deixaria de ser um duplo emergente – da escória operária e da sub-raça nordestina – embora, inevitavelmente, já fosse também o legítimo mandatário supremo da nação.
A Globo, por seu turno, desde que nascera, fora a mais pérfida criatura e a (mal) dissimulada recriadora das perfídias da ditadura. Não obstante, para o pragmático e visionário presidente eleito, ela poderia ser também um instrumento conveniente para afastar de si as suspeitas e temores gerais. Para as audiências, com efeito, logo ficou claro que o “demolidor” do mercado financeiro nacional – quiçá do capitalismo continental! – nunca tivera este propósito.
O ‘polvo’ global
Por outro lado (da esquizofrenia e do Atlântico), do meu ponto de vista, poucos aqui queriam ver, acima das alegrias do povo, o espectro do “polvo” (relevem o óbvio pela eficiência do trocadilho), cujos tentáculos e ventosas doseavam a dieta dos “televiciados” – entre o dulçor das novelas e a acidez das notícias (ou vice-versa) – para dominar suas mentes indefesas, ainda que seus corpos estivessem cada vez mais revitalizados (neste caso, pelas políticas sociais do PT).
Recém-falecido o Brizola, já ninguém mais se importava com a estranha simbiose. Muito menos nesses raros períodos em que os emergentes da pobreza se confundem com os mais abastados, sob as máscaras da prosperidade. Embora em uma única direção: somente os neófitos e os ingênuos da “classe média” se confundiam com as traiçoeiras elites, enquanto estas apenas fingiam aceitar as incontornáveis diferenças de classe.
Nesse jogo de espelhos, entre vaidades invertidas (dos que pensavam ser e dos que jamais lhes permitiriam), as dissimulações sociais encontravam uma perfeita correspondência na hipocrisia global. Até que alguma crise arrancasse as máscaras tanto de pobres quanto de ricos; e afinal rasgasse as fantasias dos ditos “pactos sociais” entre partes tão desiguais. Como prometem ser os novos “acordos” trabalhistas, historicamente determinados pelos que não querem enxergar nem reduzir as desigualdades.
Compreensivelmente, ninguém tampouco quis ver o polvo sobre o povo (nem Lula, nem Dilma, nem o PT e aliados). Por sua parte, o “octópode global” nunca hesitou em confundir a todos: ora com seus coquetéis de purpurinas, viciante para muitos, ora lançando sua tinta púrpura sobre a própria imagem.
A geometria pessoal
Metáforas à parte, também as leis geométricas – válidas para a visão e para as ilusões de ótica (ou da consciência) mostram que, quanto mais próximos estamos das “televentosas” – de alta definição – mais difícil definir a imagem real da Globo. Entretanto, este paradoxo visual já não era o meu, há dez ou quinze anos, seja porque continuei a ver o monstruoso espectro à distância (com a mesma clarividência brizolista), seja porque minha prioridade era outra nessa altura.
Na verdade, era um duplo dilema: deixar ou não a direção de televisão, como já disse, e perceber se a “crise profissional” resultaria de uma exaustão temporária ou, ao contrário, seria o prenúncio de uma opção definitiva. Por razões óbvias (e óticas), viver ou não sob uma ditadura cultural – qualquer que fosse o meio exterior – jamais figuraria na equação dos novos rumos.
Sobretudo sem um veredicto profissional “interior” e “definitivo” (que tampouco brotaria em solo europeu, e nem no Brasil, nos anos seguintes). Antes, por ironia, Portugal e Espanha – até então governados pelos socialistas – igualmente sucumbiriam ao melancólico neoliberalismo europeu; e a Catalunha (onde vivi), por consequência, a um patológico provincianismo independentista. Com efeito, não eram visões inspiradoras para quem pensava sobre imagens libertárias.
Como explicitei (nos depoimentos anteriores) minha premissa e o compromisso da imparcialidade – ambos desde sempre ignorados pela Globo – devo admitir agora que, embora nenhuma emissora me influenciasse diretamente, em outro hemisfério, tampouco seria possível negar a interferência de um monopólio de comunicações sobre todos os brasileiros – inclusive no exterior.
Por outro lado, podemos apenas imaginar o que teria sido a vida de qualquer técnico ou artista se vivêssemos num mercado audiovisual realmente competitivo; e proporcional às dimensões e à produção de riquezas do Brasil, sobretudo durante os anos bombásticos do PT. Provavelmente, eu teria cogitado voltar naquela altura; e quando de fato voltei, talvez tivesse retomado o ofício de diretor, ou roteirista. Quem saberia?
Do ideal ao visual
Reconheço que os prognósticos individuais são sempre especulativos, para o bem ou para o mal. No entanto, os diagnósticos sociais (a posteriori), quando se baseiam em estatísticas, podem ser tão precisos quanto as radiografias médicas, para os olhares especializados. Ou também quando são registrados em imagens – autênticas impressões “digitais” (outrora magnéticas, fílmicas, pictóricas) da realidade.
Podemos afirmar, portanto, que a existência da Globo já interfere com cada brasileiro, direta ou indiretamente, pela própria inexistência da pluralidade. Em exemplos ainda mais gráficos, todos conhecemos a imagem da “ponte para o futuro” oferecida pela emissora; ou seus “eleitos” – artistas, políticos, policiais, procuradores, juízes e um presidente usurpador – encarregados de conduzir a bizarra construção.
Antes de qualquer exercício de futurologia, já temos as estatísticas do tal futuro – além da ponte – que corroboram a “radiografia” de uma esquizofrenia. Contudo, citar os indicadores econômicos e sociais seria desnecessário, uma vez que podemos resumi-los: sob os governos populares e democráticos, todos os índices apresentaram crescimentos expressivos. Assim como desabaram todos, junto com a ponte.
Exceto o desemprego recorde da nossa história (a partir de 2015), proporcional às múltiplas derrocadas – dos investimentos sociais, do PIB, da autoestima e do próprio País – cujos números assustadores, por uma assinalável coincidência, foram registrados um ano depois do menor índice histórico de desemprego, quando uma camarilha de bandidos decidiu que a presidenta Dilma já não governaria.
Analogamente, na política, seria redundante (ou repugnante) recordar imagens e sons “globais” que ainda tentamos arrancar de nossas mentes. Mas também podemos resumi-los, matematicamente: 100% dos expoentes máximos do consórcio PSDB-PMDB já eram bandidos praticantes, quando foram induzidos pela Globo a assaltar o poder, o que foi comprovado por seus próprios áudios e vídeos.
Também se comprovaria que o referido “futuro” era de fato tão próximo quanto nos fora prometido, pois 100% dos líderes golpistas (Aécio, Temer e Cunha) já foram presos, no sentido literal ou moral – uma vez condenados pela opinião pública – ou seja, por 100% dos que têm alguma opinião formada. Eis o que chamo de “efeito bumerangue” da direita, ao qual voltaremos.
Antes sublinho que algum fenômeno ótico ainda insiste em obscurecer as imagens evidentes de um golpe; e parece impedir não só a renúncia ao poder – dos próprios parasitas fisiológicos – como as reações de indignação da população. Não obstante, já é possível perceber que a inércia de milhões de brasileiros é proporcional aos casos de renúncia da consciência – por miopia, cegueira, ou esquizofrenia – quanto às verdadeiras intenções de poder da Rede Globo.
No próximo depoimento, portanto, prosseguiremos na direção oposta (ao poder e ao momento presente), para evidenciar outras sutilezas que não estão nos detalhes (ou nas aludidas “televentosas”), mas nas imagens que se revelam nos planos gerais, quando afastamos nossas câmeras. Assim observaremos as intenções ocultas (ainda que evidentes) nas distintas renúncias – as genuínas e as que mal dissimulam a voracidade de poder.
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