Por Wilson Solon.
Em meus sucessivos exílios, mais ou menos voluntários, o isolamento nunca me fez sentir solitário nem carente do alheio, para golpeá-lo. Uma vez investigadas as dores do golpe e reveladas minhas eventuais componentes egoístas, o meu dilema parecia equacionado. A cura, ainda que tardasse, era só uma “questão de tempo”.
Além disso, por dever de ofício (e talvez pretensiosamente), este diretor nunca tardou a reconhecer os vilões sob suas máscaras. Tardaria muito menos na recente tragédia (ou farsa) política, por cada um dos seus ingredientes burlescos: a notória discrepância de talentos entre os bons e os maus atores, a banalidade dos disfarces, a obviedade de um texto mal estruturado e o tosco cenário apresentado – uma ponte para o futuro!
Por tudo isso, a derrocada espetacular do golpe (que arrastaria seus próprios cenógrafos) era já previsível. E até risível. No entanto, do ponto de vista dos espectadores, talvez o que ainda mantenha algumas mentes paralisadas, à margem do tempo, seja ver tantos seres “primitivos”, em mais de um sentido (também por incluir os mesmos personagens do outro golpe já remoto), embora muitos brasileiros ainda se recusem a ver neles alguns aspectos de suas próprias mentes.
Quanto a este observador silencioso, fui obrigado a ver muito mais (pelo olhar do diretor) e admitir muito menos do que via. Com efeito, procurei não me lembrar da primeira vez em que acordei, já na maioridade, e só então me dei conta do longo sonambulismo – da infância e da adolescência – sob as trevas de uma ditadura.
No golpe recente, portanto, recusei-me a despertar mais uma vez, quase às portas da velhice, sob outra tirania de homens estúpidos. E adotei o seguinte silogismo: os novos golpistas são praticamente os mesmos, ou seus herdeiros políticos (excluídos os militares, mas incluídas as Organizações Globo); de fato, todos menos tiranos, embora não menos estúpidos do que no golpe militar. Assim, deduzi, na pior das hipóteses, todos igualmente cairiam por si mesmos, como os frutos podres.
Para consolo próprio, acreditei que bastaria identificar essas ameaças (nos criminosos do PMDB, na criminologia aplicada do PSDB, nos capangas do DEM, do PP, etc.) e esperar pelos sucessivos tombos. Ou até que, nos respectivos tempos, fossem todos consumidos pelas próprias toxinas, sem prejuízo de meu silêncio “opcional”.
A putrefação real
Por outro lado, reitero o que já foi dito: não é possível falar de opção onde existe, por definição, uma ruptura transversal na sociedade, de alto a baixo: da autodesmoralização dos governantes – pelo próprio golpe “legal” – à indignação dos governados, mais ou menos conscientes de que foram golpeados; ou de que é impossível, também por definição, um país ser governado por foras da lei.
Sintomaticamente, em nossa luta de classes, as ilegalidades e todas as formas de violência foram disseminadas de ambos os lados da fenda social. A começar, paradoxalmente, pela “legalização” dos desvios morais da própria Justiça; flagrantes, ademais, nas “justas” punições aos privilegiados, em suas confortáveis prisões domiciliares e em pleno uso e gozo do produto de seus roubos.
As regalias não se estenderam a outros perseguidos (via de regra, do PT) nem reduziram as tensões sociais, ao contrário, os ataques tornaram-se ainda mais obscenos: contra as comunidades mais pobres, os movimentos e programas sociais, mas, sobretudo, contra as sucessivas revoltas prisionais – o “espelho do mal” em estado bruto (vale dizer, sem os protocolos palacianos). Não por acaso, esses “reflexos” da ira popular são golpeados com especial violência, para que não se propaguem na direção de outros delinquentes – ou seja, dos presídios aos palácios.
Por ironia, alguns poucos “bois de piranha” (como Cunha ou Maluf, mas ninguém do PSDB) precisaram percorrer o caminho inverso – dos palácios aos presídios – para que os odores demasiado explícitos de sua putrefação moral não denunciassem todos os golpistas. Na prática, as estatísticas de políticos confinados chegam a ser desprezíveis, quer pela quantidade, quer pela “qualidade” desses criminosos (cujas “carreiras elogiáveis” só iludem os ministros do STF).
A podridão ficcional
Na “jurisprudência golpista”, entretanto, nada merece um desprezo maior do que o “banco de dados” em que se baseiam as penas desses “presidiários de novela”: os editoriais de O Globo e as audiências do Jornal Nacional. Até os espectadores mais distraídos podem observar quem são os blindados e os ingressados (nos presídios ou nas novelas), segundo a narrativa em curso e os humores do Gilmar Mendes – nosso supremo revisor de texto.
Em suma, todos igualmente conhecemos a outra grande gestora das ideias, dos espaços e dos tempos de “cativeiro” dos brasileiros (antes, apenas nas telas; agora, também nas celas). O mais surpreendente, porém, não foi sequer a Globo ter manipulado os destinos alheios, mas sim ter se embriagado com a própria imagem. A rigor, um reflexo agigantado de si mesma.
Afinal, o messias virtual só consegue convencer as mentes mais vulneráveis (assim como ocorre nas devoções religiosas). Cedo ou tarde, inevitavelmente, o onipresente “Narciso global” começaria a cair vítima das próprias manipulações, por ter se deixado igualmente seduzir pelas barbaridades que alimentam suas ficções (e os “negócios” messiânicos em geral).
Em outras palavras, as ilusões de ótica levariam a Globo a confundir, narcisicamente, suas audiências cativas com o eleitorado inteiro; seu fanatismo ideológico, com visionarismo político; sua hipertrofia patológica, com as fronteiras de um país continental; e sua vontade, com a própria democracia. Com efeito, um potencial triunfo de audiências, não fosse pela apropriação do cronômetro do golpe, que os roteiristas globais nunca souberam utilizar no mundo real.
Os tempos relativos
Assim como os acidentes súbitos, no plano material, a arrogância em causa própria também pode ser tão desconcertante quanto a relatividade – própria e exclusiva – do tempo. De fato, a efêmera “ilusão de poder” só vigora enquanto as desilusões não se encarregam de aferir os relógios para os timings e tormentos até então desconhecidos de todos.
Assim transcorreu igualmente o lento (ou intempestivo?) processo misógino que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e, por extensão, de todo o gênero feminino no Brasil – das mulheres pobres às mais ricas, sem exceções. Entretanto, como sabemos, uma vez aberta a Caixa de Pandora, todos os males são libertados – exceto Elpis, o ‘espírito da esperança’, que também seria um mal, para os gregos, por criar imprecisas expectativas em relação ao futuro.
Os não menos criativos brasileiros, no entanto, já conviviam com todos os males conhecidos. Na verdade, aprenderam a sobreviver quase exclusivamente da esperança. Até que a vissem materializar-se em conquistas sociais efetivas – pela primeira vez na História e ao longo de doze anos. Diante do farsesco assalto tupiniquim às instituições, portanto, o maior dos males nunca seria o excesso nem a falta de esperança.
A única dúvida (geradora de tantas outras) voltou a ser a submissão de todos os brasileiros – assaltantes e assaltados – às caprichosas artimanhas do tempo. Uma vez golpeados o livre-arbítrio e a democracia, ninguém se atreveria a prever os efeitos sobre as conquistas do passado recente. Serão vertiginosos como as destruições do Temer & Corruptos Associados, ou fugazes como as transformações sociais do PT?
Para ser mais preciso acerca dessas imprecisões cronológicas, durante e depois do golpe, as 20 horas anuais de participação do Lula no Jornal Nacional seriam realmente excessivas? Ou ainda escassas, por se tratar de um protagonista que assegura tamanha audiência à telenovela política? E as torturas jurídicas impostas ao grande vilão e sua família (e antes ao Dirceu, ao Genoíno, ao Vaccari, à Dilma, à Gleisi e ao PT em geral) seriam demasiadas ou adequadas à periculosidade desses personagens?
Em suma, na nova “ordem” cronológica, como deveríamos chamar os imprevistos da direita (ainda que previsíveis e evitáveis para as esquerdas)? Ou como contabilizar os contínuos ataques aos bolsos e aos direitos da população (dos aumentos no preço do gás e da energia à virtual eliminação dos empregos e aposentadorias): como meros “acidentes” mensais, semanais, diários? Com efeito, o tempo é bastante relativo.
Os conceitos absolutos
Não obstante, insisto em chamar a atenção para o que é absoluto: os que tentam relativizar os fatos, para além da própria relatividade autorizada pelo tempo, também esbarram na sua implacável reação. A elasticidade das mentiras, por exemplo, ainda que divulgadas por meses ou anos a fio, jamais se converte em uma única prova concreta contra os inocentes.
Por outro lado, curiosamente, uma única prova contra os efetivos criminosos já foi o bastante para fazer ruir todo o pedestal (ou sepulcro de tenebrosas verdades) sobre o qual eles ergueram as próprias estátuas. Mas cujos destroços atingem as cabeças de todos os idólatras que inadvertidamente os veneravam.
Pois reafirmo o que já disse dos golpes súbitos: se não matam, educam, pois todos os envolvidos nas brutalidades obedecem às mesmas leis – físicas – que regem a matéria bruta; e todos vemos os mesmos valores absolutos (ainda que os enxerguemos de formas distintas). Seja como for, ninguém é capaz de controlar as imagens, os sons, os personagens, ou a narrativa dos desastres, no mundo real.
Nem sequer a Rede Globo. A rigor, muito menos ela, que manteve por tanto tempo o foco sobre si mesma. Portanto, para recuperar o tempo perdido, não tardaremos a mostrar-lhe como se sentem os que não pensam como ela. E como pensam os que se sentem muito mais brasileiros do que ela. Ou ainda, o que sentem e pensam dela os aparentemente “silenciosos”, mas apenas porque não fazem o mesmo uso irresponsável da voz.
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