O 13 de Maio e o Fundo Negro

Por Wilson Solon.

Sou branco. Não deveria levantar nenhuma bandeira em nome dos negros e pardos sem conhecer todos os matizes de suas dores e humilhações. Muito menos na data determinada pelos próprios brancos para representar a sua “libertação”. Se ainda assim insisto, ou sou mais um hipócrita, ou mais um culpado. Parto da segunda premissa.

Passei a vida a tentar me eximir das culpas (e lá se vão mais de cinco décadas) por pertencer à hedionda classe ‘mérdia’ branca, que me ensinou a olhar os “diferentes” entre a prudência e, na melhor das hipóteses, a tolerância. Sentimentos tão hediondos, repito, quanto antinaturais, porque além de fabricados “culturalmente”,  visam, literalmente, exacerbar as diferenças humanas que só emergem aos olhares desumanos.

Desafio qualquer ‘branco médio’ a negar que recebemos esses “óculos” desde o berço. A imensa maioria o incorpora sem questionar; alguns percebem o objeto incômodo, mas também as vantagens de ver o mundo através de suas lentes multicromáticas; e apenas uma minoria lúcida se recusa a aceitá-lo como parte de sua anatomia ocular.

Por ser um dos inadaptados, não foi difícil acumular os argumentos habituais a favor da tese de que não sou racista: porque não tolero piadas do gênero, porque tenho inúmeros amigos, colegas e familiares pretos, ou porque vivi anos na Europa, onde todas as “etnias exóticas” já são vistas com uma naturalidade que, originalmente, de fato não tinham (pois não eram maioria nem originais do continente).

O Brasil estarrece o mundo porque somos o segundo maior país negro – e o único fora da África – em que a maioria negra se tornou invisível à burguesia branca. Que tampouco reconhece, em seu daltonismo crônico, o critério de precedência dos nativos, ditos índios (o primeiro equívoco dos brancos, já que não estavam na Índia, mas no Brasil).

Na mais fraternal das hipóteses, todas as nossas raças já eram autóctones quando o território foi reconhecido como nação independente. Aqui, portanto, a miopia racial não é estarrecedora ou legalmente indefensável apenas sob o olhar europeu, mas vergonhosa para qualquer brasileiro. Ainda assim, ter argumentos e consciência não me eximia das culpas pessoais, nem revelava as causas do meu incômodo de ser branco.

Tampouco explicava a “justiça divina” vigente nesses tempos bizarros, sob um tortuoso silogismo, de viés neopentecostal e fascista: se só tem culpas quem tem consciência, logo, livrar-se delas pode equivaler a anular a consciência; desde logo, da maior de todas as culpas – pelo próprio racismo. E assim eclodiu o bolsonarismo radicalmente inconsciente (o que vale tanto para o “mito” dos brancos quanto para o “preto da foto” que expõe a fraude).

Mas não é do óbvio que pretendo falar, nem do nosso racismo estrutural, nem das dores dos negros (também eles, ora mais ora menos conscientes). A rigor, com conhecimento de causas e reconhecimento de culpas, posso falar somente das dores dos brancos. E o branco capitalista no Brasil não conhece dor maior do que a de um ataque ao seu ‘bolso’ (não por acaso, sugestivo epíteto do ignaro que nos ataca a todos).

Mas não falo do que possa ser subjetivo. Adoto a linguagem objetiva que aprendi com o ‘mercado’ rentista: para além das culpas, conscientes ou não, temos dívidas históricas com um imenso contingente populacional de brasileiros legítimos, ainda que invisíveis.

Compreensivelmente, torna-se preocupante quando um negro consegue entrar no campo de visão de um branco. Não só como ameaça ao seu patrimônio, mas como se o obrigasse a fugir o olhar de um “cobrador em potencial”, de alguma dívida que já considerávamos remota e impagável – em nome da propriedade, da família, da tradição, ou de qualquer outro sofisma que oculte uma apropriação histórica. Mas, antes de tudo, econômica.

Em outras palavras, para que não restem dúvidas, apenas dívidas: o Brasil, como nação, tem o dever de ressarcir os espoliados, de cujas heranças todos os seus descendentes são credores, nas distintas medidas nitidamente visíveis na pobreza e na cor de sua pele (que os próprios devedores fazem questão de destacar).

Não faço aqui uma proposta moral subjetiva, ou demagógica, de complexa contabilidade legal. Nem sugiro apenas mais uma política de cotas raciais – embora justíssima, como paliativo – capaz de aplacar a consciência de alguns brancos, mas ainda assim incapaz de reabilitar a autoestima de todos os pretos.

Trata-se, isso sim, de uma dívida social e nacional (em uma pretensa República), efetivamente anterior à externa e à interna. Não obstante, as mesmas aves de rapina do passado, internas e externas, querem continuar a cobrar dos mesmos explorados, ironicamente, sem sequer apresentarem números credíveis para as devastações pretendidas – trabalhistas, previdenciárias, e por aí vão.

Números por números, por outro lado, desde 1822 (como uma possível convenção temporal para os cálculos), quando nos tornamos o centro do império, há suficientes documentos históricos e comerciais sobre a dimensão da população escravizada, sobre o número de horas diárias trabalhadas em média por um escravo, e quanto ele ou ela vivia em média, naquelas condições. Assim como há registros dos lucros anuais auferidos ou devidos pelo Estado a quem produziu nossas riquezas, nos últimos dois séculos.  

Em português ainda mais claro (tipo preto no branco), de posse desses dados, com meia dúzia de computadores e historiadores, e com uma precisão superior aos vagos conceitos atuais de igualdade e justiça social, bastaria a decisão da cidadania brasileira de reconciliar-se consigo mesma, para que chegássemos a uma estimativa, matemática e consensual, do valor global do trabalho escravo no Brasil – a ser restituído a seus herdeiros legítimos, pelos herdeiros de uma prosperidade ilegítima, na sua origem.

Eis também a origem (e o fim) das minhas culpas, não de ser racista, mas devedor do que me coube dessa prosperidade nacional. E mais uma vez desafio qualquer outro branco, com ou sem consciência de sua culpa, a negar os benefícios e a mais valia de poder exibir sua pele alva desde os primeiros passos na vida. Pois já aí começou também o nosso racismo, ainda que inconsciente.

O Fundo

Na impossibilidade de ressarcir meus irmãos negros por minha parte da dívida, amenizo a culpa com a outra fortuna que um ser humano, de qualquer raça, deve se esforçar para acumular – honestidade e inteligência. No primeiro caso, devo e não ‘nego’ (que idioma traiçoeiro!). Nem sonego nada que minha inteligência considere válido para todos.

Sugiro, portanto, a qualquer político ou economista de plantão, um novo fundo (por exemplo, nos moldes do daltônico de Curitiba), porém com critérios éticos a serem definidos pelas duas “metades” étnicas, por que não? Cujos recursos, a serem transferidos a seu real proprietário – a população negra – se assentem nas bases matemáticas e consensuais referidas há pouco. Nem expropriações violentas nem caridade dos brancos, apenas um imperativo – legal, moral e ético – da cidadania brasileira.

Sugeriria um ‘Fundo 13 de Maio’, se de fato acreditasse que a hipocrisia das elites brancas alguma vez quis ver algum escravo liberto. Assim proponho um ‘Fundo Negro’, autêntico e ostensivo, para que ninguém conteste nem esqueça o fato de que o Estado e o Tesouro brasileiros contraíram uma Dívida Trabalhista coletiva. Não se trata, por evidente, de um programa nem de caridade social, mas de um Débito e de um Espólio (ou Herança) coletivos.

Por outro lado, não menos pedagógico, as volumosas dimensões desse Fundo Negro (embora, repito, perfeitamente estimáveis) certamente vão ser objeto das piadas racistas, sexistas, ou das referências escatológicas da “moderna filosofia brasileira” (diretamente da Virgínia). E assim, cada vez mais, oxalá se desmascare o que os brancos têm de mais exemplar da escuridão humana.

Não por acaso, nunca antes tínhamos sido tão humilhados por um governo branco. Finalmente conhecemos a autêntica democracia racial – da vergonha! Mas só os brancos merecemos lembrar, todos os dias, que além de vítimas da nova “moral econômica”, somos também devedores, morais e econômicos.

E vale relembrar ao Guedes & Cia que a nossa maior prioridade orçamentária, portanto, já não são sequer os afagos conciliatórios dos programas sociais da esquerda (ainda que admiráveis, como a obra inteira do PT e de um gênio como o Lula). Mas ainda menos seriam os novos assaltos do fascismo sobre os mais pobres, em sua maioria, negros.

Agora a prioridade – social, econômica e civilizatória – é zerar um desequilíbrio histórico visível e sensível a todos. Menos, é claro, aos principais beneficiários da apropriação indevida. Mas sobretudo nesses tempos em que fanáticos e milicianos governam os direitos humanos, não ver as desigualdades já deixou de ser apenas falta de empatia. Tornou-se um problema de caráter.

A mesma miopia, porém, que sempre predefiniu os papéis do negro e do branco (numa cena de assalto, por exemplo), logo será revista, com argumentos sólidos, sobre quem é a vítima da violência individual ou o usufrutuário de uma expropriação social. Como branco, meu único alento é ser insuspeito na sugestão desse ‘fundo negro’, já que só não ser racista nunca me consolou muito mais do que pagar uma conta da luz ou do gás.

Resgatar nossas dívidas históricas é a única garantia de que ninguém mais terá culpas nem temores (de assalto, por exemplo) pelas diferenças visíveis. Até lá, o Brasil segue fiel ao seu destino paradoxal, cujo conceito de “democracia racial” se revela tão hipócrita quanto nos permite reconhecer, ao mesmo tempo, que somos de fato a única nacionalidade legítima “de todas as raças”. Pois todas já eram proprietárias, de fato, de uma nação que ainda nem sequer existia de Direito.

Mas a maioria é negra. Para nós brancos, portanto, diante dos novos assaltos, a rigor, de um inédito terrorismo racial de Estado, só nos restam duas alternativas. A primeira, para alguns “homens de bem”, é ter que armar a população, inevitavelmente, para que os malditos pretos não venham reivindicar o que continuamos a lhes roubar.

A segunda, para os bons pagadores, diante dos que nos emprestaram as mãos, os braços e as mentes, durante séculos, e de seus herdeiros que ainda produzem a maior parcela de nossas riquezas, convém baixar os olhos, humildemente, envergonhadamente, pelo menos até que as nossas dívidas lhes sejam pagas.

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