Por Wilson Solon.
A perplexidade, via de regra, revela a medida de nossa própria ignorância. O fascismo que hoje aterroriza o Brasil, e estarrece o mundo, não é resultado de uma súbita abiogênese (ou geração espontânea). Nenhuma deformação teratológica nessas dimensões prescinde de antecedentes visíveis.
Para quem prefere a exatidão da Física, à imprevisibilidade da Biologia, não há efeitos sem causas cognoscíveis. Portanto, convém conhecer o longo processo que afinal expôs ao mundo o fenômeno Bolsonaro. E sem os equívocos dos nossos “analistas” políticos, por demasiado óbvios e toscos.
Desde logo, já me desculpo pela inevitável extensão das teorizações, sobretudo hoje (no dia do exercício prático da democracia), mas de outro modo não seriam teorias, e sim narrativas à posteriori das vitórias e derrotas. Isto faço amanhã (parte 2 – na prática), como validação das teorias, ou não.
Além disso, como ainda creio na velha máxima de que ‘imagens’ valem mais do que mil palavras, obrigo-me a apresentar não apenas uma “visão” alternativa, mas as informações concretas que culminaram num fascismo (para muitos, abstrato) cujos horrores documentados, somente até agora, já bastam para apavorar o mundo.
E tal como penso ter contribuído (em outras áreas) para que a teledramaturgia brasileira (e portuguesa) não fossem meras cópias do lixo “original”, produzido pela Rede Globo, sigo denunciando que o nosso entulho visual foi apenas reciclado nas sedutoras embalagens das telenovelas (que jamais revelam as fraudes de seus conteúdos). E asseguro que o mesmo processo enganoso ocorreu na política, em relação ao Brasil real.
Falsos paradigmas
Embora a mídia mainstream ignore o tema por outras razões (óbvias), arrisco dizer que a primeira obviedade dispensável, também para nós democratas, são as comparações do ‘bolsonarismo’ com o nazismo alemão; por sua vez, inspirado no fascismo italiano de Mussolini (herói assumido de Hitler) e cujas versões ibéricas seriam o franquismo e o salazarismo (embora este, um “nazismo light”, como os brandos costumes lusitanos).
Especificidades culturais à parte, não é menos óbvio que todas as formas de violência se parecem, quando a essência – também comum a todas elas – finalmente se manifesta na matéria. Mas, a rigor, tratamos aqui da falta absoluta de uma essência humana: o ódio patológico.
Portanto, ao contrário do que se pretende, as comparações acríticas podem até fortalecer o discurso do ódio (com suas anacrônicas imagens históricas), na mesma medida em que enfraquecem as resistências individuais, pela própria repetição desses anacronismos (com as roupagens modernas das fake news). Hábitos que há muito já supúnhamos superados – como as torturas físicas defendidas por Bolsonaro.
Na prática, o fascismo brasileiro revela-se tão singular quanto a nossa cultura (pós-lusitana), ou ainda mais inusitado do que fora nas nações que padeceram da mesma enfermidade. Porém, ainda teimamos em ignorar as causas específicas do nosso ódio, bastante distintas dos demais fascismos conhecidos.
A questão pode ser resumida em seu aspecto mais evidente: o Brasil já não discrimina comunistas, ciganos, muito menos judeus; estes, sobretudo, porque possuem as características raciais e fazem parte, na sua totalidade, das classes dominantes – que chamamos de ‘elites’.
Curiosamente, a própria comunidade judaica está dividida quanto ao apoio a um candidato que se autoproclama, vaidosamente, um “nazi-descendente” (como bisneto de um soldado de Hitler). Embora, estranhamente, essa divisão não esconda a sintonia quase unânime dos judeus brasileiros com o representante do nazi-fascismo.
Entretanto, os negros e pardos (53% da população), as mulheres (52% do eleitorado), ou a imensa comunidade LGBT, igualmente se dividiram nos votos dados a um psicopata declaradamente racista, machista e homofóbico. Em todos os níveis e grupos sociais, portanto, são a etiologia, a evolução e a cronologia desta insólita divisão (psíquica) que devem ser denunciadas.
O fascismo ‘bolsonarista’, na verdade, não se assemelha a nenhum outro tanto quanto à sua verdadeira gênese histórica: o ‘antipetismo’ – o ódio visceral e irracional ao Partido dos Trabalhadores – exclusivamente brasileiro e ignorado no resto do mundo.
Afirmo-o com base nas evidências, ora dissimuladas, ora efetivamente fraudadas pelo Poder Judiciário e pela mídia nacionais (não por acaso, o Brasil já foi repreendido pela ONU por sua violação aos direitos políticos do Lula e ocupa a 102ª posição em liberdade de imprensa, entre os 180 países pesquisados).
Etiologia do ódio
A propósito do foco, que o mundo inteiro persegue, sublinho a relativa coincidência entre o ponto de vista dos portugueses e o deste autor (cujas saudades são absolutas): vivi em Portugal (e Espanha) durante os dois governos de Luís Inácio Lula da Silva. Nesses oito anos, só voltei ao Brasil em poucas e breves ocasiões.
Suficientes, porém, para a minha relativa isenção como observador (dos dois lados do Atlântico), ou para ter me surpreendido com as transformações visíveis já a partir das ruas e espaços públicos do Rio de Janeiro. Com mais propriedade, onde já não eram mais vistos os espetáculos deploráveis (que hoje retornam) de famílias inteiras ao desalento.
Na direção inversa, todos na Europa também nos surpreendíamos quando eram os portugueses (ou os demais europeus) que recebiam o Lula como um pop-star, ou um estadista de dimensão planetária, cujo prestígio nunca antes fora sequer imaginável para os irrelevantes governantes brasileiros.
E não seria necessário destacar os sentimentos atuais, por evidentes, dos constrangimentos aos temores comuns aos dois povos. Seja porque o fascismo agora fala português, seja pelo que envergonha e ameaça a humanidade inteira, como o já anunciado extermínio dos povos indígenas e da própria Amazônia – o maior regulador climático do planeta – através do agronegócio e da exploração predatória dos recursos de seu subsolo.
Mas passemos ao que só estaria evidente para os observadores da psicologia humana, desde que o Lula e o PT conquistaram, democraticamente, o poder político. E deflagraram, involuntariamente, os mais hediondos mecanismos do espírito humano, cujas componentes estruturais – a razão e as emoções (ou a complexa relação entre ambas) – permanecem virtualmente negligenciadas.
A “evolução” do antipetismo
De 1500, com a chegada dos portugueses, ao ano de 2003, com a primeira eleição do Lula, os brasileiros viveram sob os mitos da “democracia racial” e da “paz social”, uma vez que desconheciam conflitos mais graves, quer nas teorias, quer na prática cotidiana. Obviamente, porque tanto as classes quanto as raças “inferiores” jamais se imaginaram em outra posição que não a da submissão “natural” aos colonizadores brancos europeus.
Os seres “superiores”, analogamente, desde a escravidão até os atentados verbais e físicos de Jair Bolsonaro à dignidade humana, não precisavam verbalizar seus preconceitos sociais, pois nunca se viram de fato na contingência de ter que dividir os privilégios com a imensa maioria de “predestinados naturais” a servirem a seus interesses.
Assim, todos os brasileiros convivíamos sob uma folclórica harmonia exterior – conquanto instável, antinatural e imoral. Em suma, nossas “razões” apenas reproduziam a mesma irracionalidade dos dogmas religiosos; e as emoções simplesmente se submetiam ao idêntico silêncio aparente, fosse na angustiada passividade dos oprimidos, fosse na hipocrisia, no egoísmo e na indiferença dos opressores.
Reitero que o nosso fascismo não difere dos demais pela absoluta falta de racionalidade, nem pelas respectivas emoções em si (sempre universais), mas pela originalidade dos processos de alienação das consciências e manipulação das emoções – exclusividades do Brasil – através de nossa outra singularidade mundial: o monopólio da Rede Globo de Televisão.
Não obstante, nossa mídia e a do resto do mundo insistiram em tomar os efeitos pelas causas. Não surpreende que as nações desenvolvidas tenham sido cúmplices silenciosas do desastre iminente. Nem que seus cidadãos se surpreendam, somente agora, com os nefastos sentimentos atribuídos aos brasileiros, ainda que a uma estreita e instável maioria da população de 210 milhões de almas.
Um extraordinário reforço, por outro lado, às tropas dos mortos-vivos, capazes de disseminar a epidemia de ódio e ignorância para além das fronteiras latino-americanas. E de alterar, pelas próprias dimensões geográficas do Brasil, o equilíbrio anímico e civilizatório de todo o planeta. Sem falar dos danos ecológicos, bem mais evidentes.
Desgraçadamente, os nobres discursos da razão perderam qualquer eficácia terapêutica para as emoções odiosas que, repito, nada têm de súbitas nem de espontâneas. Na verdade, foram longamente cultivadas e apenas potencializadas pelos discursos recentes de um notório psicopata. Diante da barbárie (quase) consolidada, já não há muito que fazer, senão retificar os pontos de vista equivocados.
Sem dúvida, para as prevenções de futuras epidemias de ódio. Mas sem as prevenções do passado contra os falsos inimigos. As eleições já nos mostraram os métodos e os agentes necessários à confecção de vacinas eficientes. O veredicto das urnas apenas nos mostrará as dosagens – em função do número de infectados – necessárias à cura de uma sociedade enferma.
Seja como for, se no equilíbrio da natureza física, para todas as espécies animais, a sanidade sempre vence as doenças, convém acreditar que o amor se sobrepõe à loucura “global”, também na natureza humana…
Um comentário em “ANATOMIA DE UMA ABERRAÇÃO (PARTE 1 – EM TEORIA)”