26 – SOB O PONTO DE VISTA PROTO-CAPITALISTA

Por Wilson Solon.  

O GOLPE

Do supostamente invisível (apesar das evidências cronológicas), passemos às provas históricas da sucessão gradual entre dois monopólios – o Cristão e o Capitalista. Retomo o caminho do ponto em que deixamos a Igreja e seus insolúveis dilemas temporais: logo após o bem-sucedido patrocínio aos artistas do Renascimento, mas na iminência de esgotar essa estratégia de perpetuação do seu poder já milenar.

E começo por estabelecer os paradigmas mais adequados a temas aparentemente tão complexos – como a fé e o capital – sobre os quais jamais houve consensos de nenhuma natureza (culturais, históricos, geográficos, acadêmicos, ideológicos). A rigor, tudo o que se pode afirmar é que nada é rigoroso nas definições de ‘religião’ e ‘economia’.

A prática histórica

Volto, portanto, ao procedimento prático (ou plástico) de “afastar as câmeras”, para captar tudo o que possa estar contido num ‘plano geral’. Inclusive os detalhes, ainda que nunca possamos esgotá-los através do que nos audiovisuais chamaríamos de ‘planos detalhes’. Ora porque o foco se perde no tempo, ora porque não convém aos interesses “globais” do poder.

Nesse sentido, recordemos a cronologia dos máximos consensos possíveis, entre os estudiosos. E consideremos o ano de 1500 como o marco final do Renascimento, quando o monopólio católico da fé já se debatia contra numerosas reações. Entre as quais, a Reforma Protestante foi a mais visível e sonora (tanto pelas componentes religiosas quanto econômicas). Mas nem sequer foi a mais importante.

Na mesma altura, a descoberta das Américas teria efeitos ainda mais contundentes. Não por acaso, os dois ou três séculos seguintes permitiram alguns consensos acadêmicos, ainda que somente quanto às nomenclaturas. O período estabelecido como a “Era dos Descobrimentos” (até 1600), pelos historiadores em geral, também foi chamado de “Mercantilismo” (que, porém, ainda se estenderia até cerca de 1800), pelos estudiosos do capitalismo, em particular.

Já quanto às controvérsias insolúveis, alguns quiseram incluir a Era dos Descobrimentos no conceito de Renascimento (o que já foi contestado, sob o ponto de vista da cronologia histórica). Imprecisões análogas ocorrem no plano econômico, que tampouco contribuem para a compreensão dos aspectos estruturais do capitalismo: para muitos, o ‘mercantilismo’ foi o seu primeiro estágio; para outros, o efetivo capitalismo só surgiria mais tarde. Seja como for, ninguém sabe dizer exatamente quando.

Curiosamente, já vimos que a “inauguração” do cristianismo padece das mesmas indefinições. Terá ocorrido no nascimento biológico de Jesus? Ou na invenção do “Cristo”? Na conversão de Constantino ou no édito de Teodósio? Em qualquer hipótese, já (quase) ninguém questiona a futura transformação da nova seita em monopólio da fé.

A transição mercantilista

Analogamente, podemos passar do conhecimento impreciso das datas para os planos gerais, que incluem “precisamente” o que investigamos: a transição gradual entre dois monopólios, ainda que as datas iniciais e finais não existam nem façam falta, para que os resultados nos surjam em foco.

Por definição, uma transição corresponde ao caminho, quaisquer que sejam os pontos de partida ou de chegada. Mas estes não aparecem nem desaparecem. Assim como os “capitais” já circulavam sob o domínio da fé, há diversas “fés cristãs” sob o domínio capitalista. Temos, portanto, o caminho inteiro já percorrido, o que inclui o objeto do nosso foco: o período mercantilista.

Apesar das nítidas características das relações “comerciais” (ou antes, exploratórias) com os povos subjugados pelos europeus, na África e nas Américas, os estudiosos admitem que não seria possível reconhecer no mercantilismo o moderno ‘capitalismo’. Não obstante, podemos estabelecer curiosos paralelos entre aquele e o cristianismo.

O mercantilismo não tinha regras rígidas (além da força bruta e das práticas predatórias), como tampouco havia, no proto-cristianismo, preceitos definitivos para a fé. Os dogmas vão sendo criados ao longo dos séculos, à medida que o poder político da Igreja se deparava com as resistências mentais dos menos “fiéis”. E também as novas “proposições teológicas” se sofisticavam, em função das especificidades locais, ou da intensidade das reações contrárias.

Obviamente, não seria necessário reproduzir as sucessivas fases dessa contaminação milenar do pensamento humano – a partir das pluralidades culturais até o obscurantismo absoluto. Como tampouco seria possível analisar cada um dos dogmas ou preceitos econômicos, mais ou menos predatórios, até que a nossa “civilização” se tornasse presa do atual monopólio do capital.

Contudo, por definição e observação, torna-se evidente que a consolidação de qualquer monopólio passa antes pelo seu gradual fortalecimento; e, na direção inversa, pelo enfraquecimento compulsório do monopólio anterior (até que deixe de sê-lo). Ainda assim, nunca será demasiado reiterar: nem o capitalismo surgiu da noite para o dia nem o cristianismo precisou desaparecer da face da Terra.

Mas três componentes são indispensáveis (não necessariamente nesta ordem) à sobrevivência de qualquer monopólio de dimensões planetárias: o ‘poder econômico’, a ‘força política’ (com ou sem a componente militar) e a ‘manipulação das imagens’ (ou das informações em geral). Curiosamente, as respectivas incoerências teóricas nem sempre implicam em conflitos, na prática.

Assim, a ‘bondade’ e a ‘humildade’ (teóricas) da Igreja cristã nunca a impediram de acumular capitais e imensas extensões de terra; de produzir e oprimir a ignorância, com suas imagens; de erigir monumentos aviltantes à miséria humana; ou de possuir exércitos próprios, entre outros exterminadores de seres humanos – como os cruzados, os inquisidores, os proprietários de escravos.

A “eficiência capitalista” tampouco se compadece de desmentir todas e cada uma de suas premissas teóricas. Na prática, para a imensa maioria da espécie humana. Portanto, não haveria razões para que a decadência – política, econômica e doutrinária – do monopólio cristão implicasse em antagonismos com o capitalismo. Nem durante nem após a transição.

Das teorias às práticas

Como as “práticas das teorias” já são suficientemente conhecidas, falemos das “teorias da prática”: as sistematizações intelectuais (doutrinas, tratados, normas e leis), sob todas as formas escritas que nos permitem “ver” e aplicar ideias abstratas (como os compêndios teológicos, litúrgicos, políticos, econômicos, administrativos, etc.). Voltemos com tudo isso aos dois monopólios em questão.

Suas respectivas regras comprovam que o ‘cristo’ e o ‘capital’ sempre conviveram em estreita “harmonia”, embora convenha relativizá-la: na verdade, para os privilegiados dos dois sistemas, trata-se de uma autêntica simbiose, capaz de potencializar seus efeitos “construtivos”.

Quanto aos negativos, as forças motrizes da fé e do capital são também equivalentes, ora pelos preconceitos morais dos “escravos da fé”, ora pelo caráter egoísta dos capitalistas. Seja como for, são forças sempre proporcionais às destruições, às humilhações, ou às explorações, para a imensa maioria dos excluídos, pelos dois sistemas.

Como não se trata apenas de metáforas religiosas, mas de poderes materiais, foi necessário que surgisse alguma entidade “real”, capaz de concretizar tanto os aspectos teóricos quanto as fronteiras geográficas da nova “monarquia” (do mercado) que comanda os destinos humanos. Sem que se saiba exatamente desde quando, repito, e sem que o “rei posto” sequer reivindicasse o cadáver de um “rei morto”.

Ao contrário, o “velho” cristianismo conservou o dom de ressuscitar onde fosse conveniente aos interesses do herdeiro capitalista. Ainda assim, nenhuma monarquia absoluta, ou monopólio, pode prescindir dos aspectos formais – leis ou dogmas sistematizados – nem de uma sede física de onde exercer seu poder de sedução sobre os espíritos e corpos dos súditos.

Esta (santa) sé, outrora localizada no Vaticano, um dia mudou-se para Wall Street. Só não há registros precisos da cerimônia de sucessão em si. Por outro lado, como aprendemos com as teorias da relatividade – e comprovamos com as manipulações da Rede Globo – as provas materiais nem sempre são necessárias, para uma sucessão efetiva entre poderes visíveis.

Podemos dispensar inclusive as numerosas etapas da “evolução” (se cabe) do capitalismo; desde as mais remotas e selvagens (do feudalismo à Revolução Industrial) até as mais incompreensíveis, dissimuladas, ou traiçoeiras, como certas teorias econômicas modernas.

Hoje, porém, já temos as imagens (reais) do último trecho do caminho, no qual o capitalismo adquiriu a consistência teórica – através da sistematização das “leis” econômicas – que ainda faltava ao mercantilismo. Mas tanto quanto este, não deixou de conquistar, ampliar e delimitar seu território geográfico (embora sua influência ultrapasse as próprias fronteiras do “império americano”).

Mais uma vez, como na Igreja Católica Romana, o capitalismo estadunidense (visto aqui como um aprimoramento das “regras” eclesiásticas) tampouco apresenta incompatibilidades internas dignas de menção (como exceções à regra, ou às suas “sub-regras” políticas, econômicas e imagéticas).

Assim, não podemos dispensar a história dos Estados Unidos da América (apesar de não menos indigente do que as próprias regras), uma vez que sua história tampouco dispensou os legados menos edificantes do cristianismo europeu. A começar pelo seu viés estrutural e inspirador das regras capitalistas: a mentira, sob todas as formas conhecidas, dos dogmas às imagens (ou à supressão delas, quando convém).

No plano político, a “democracia” (evangélica e capitalista) norte-americana, tida como a mais avançada do planeta, jamais ocultou suas incoerências intrínsecas: desde a conquista territorial, com o extermínio dos povos nativos (a exemplo do catolicismo hispânico), até o último século, quando amplos setores da população ainda eram excluídos do eleitorado (as mulheres, até 1920; os negros, até 1965).

Não fosse o bastante para questioná-lo (como um falso dogma civilizatório), o complexo sistema eleitoral norte-americano, baseado num bipartidarismo fortemente tutelado pelo capital, além de estabelecer outros entraves às diversidades ideológicas (que não “rezem” pela cartilha da direita capitalista), com frequência, subverte o próprio conceito matemático de ‘maioria dos votos’.

Antes de nos ocuparmos, no entanto, dessas controvérsias secundárias, será mais proveitoso analisar as demais componentes – militares, econômicas, religiosas, ideológicas – que podem ser literalmente “revistas”, no capitalismo, como já foram “vistas” no cristianismo. E através das mesmas imagens, ora manipuladas, como o são pela Rede Globo, ora mais nítidas, como as veremos sob o ponto de vista cinematográfico.


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