24 – SOB UM PONTO DE VISTA INVISÍVEL À HISTÓRIA

Por Wilson Solon.  

O GOLPE

Já antecipei uma efetiva “troca da guarda” – entre o Cristianismo e o Capitalismo – no Mundo Ocidental. Talvez a afirmação sugerisse uma simples metáfora do poder, na medida em que tratamos de duas “entidades” impessoais, ou transnacionais, portanto invisíveis a olho nu. Mas asseguro que falamos de algo concreto, ou tão material quanto os respectivos “templos sagrados” (as igrejas e agências bancárias).

O que contribui para a invisibilidade do fenômeno, e para o silêncio dos observadores, são as enfermidades já analisadas: ora os sofismas “racionais” (religiosos, políticos, econômicos), ora as emoções desvairadas (dos fanatismos e das ambições materiais). Todos capazes de provocar estranhas ilusões de ótica, entre a cegueira para o real e as “imagens irrealizáveis” (como os êxtases místicos ou os sonhos de consumo).

Dou mais um exemplo concreto do que pode ser, ao mesmo tempo, visível e invisível: na primeira caravana do Lula pelo Nordeste (onde só se via o amor do povo, não o ódio das elites), as imagens reais foram amplamente repercutidas nas mídias alternativas e internacional; mas nem uma única foto na “grande imprensa” nacional – assim chamada por seu compromisso de informar a população sobre fatos relevantes. Compreende-se a subjetividade dos critérios de relevância.

Objetivamente, porém, a relativização de critérios absolutos (e matemáticos) permanece incompreensível: por um lado, nenhum brasileiro havia arrastado tantas multidões, fora dos períodos eleitorais; do outro lado da mesma equação, nenhum repórter fotográfico foi capaz de perceber a ocorrência do evento, nos maiores grupos de comunicação – Estadão, Folha e O Globo. Apesar de o Jornal Nacional dedicar ao Lula (como a ninguém) várias horas de sua “cobertura jornalística”.

Verdade e História

Entre os impenetráveis dogmas da fé e as modernas “pós-verdades”, ao menos comprovamos a existência de temas que não podem ser vistos nem falados. Ainda assim, como falamos de imagens “relativas”, sempre podemos percorrer o caminho inverso, e apontar nossas câmeras para onde supomos – matematicamente – haver conexões entre as hipóteses teóricas e a realidade ainda improvável. Até que nos surjam as provas perseguidas (como na própria Teoria da Relatividade).

Na prática, ainda que nos pareçam, ora óbvios, ora inexistentes, resumiremos os pontos em comum entre o cristianismo e o capitalismo. E recomeço pelas falsas premissas dos sofistas, contra o referido conceito de ‘troca da guarda’: diriam eles que, desde a Antiguidade mais remota, sempre existiram “mitos religiosos” e, em paralelo, as “volúpias do capital”. De fato. Inclusive já os retratamos, mas convém recordá-los.

Inúmeras religiões do passado já acreditavam em “virgens mães”, “homens-deuses”, “milagres”, etc., antes que o cristianismo se apropriasse de tudo isso e sua poderosa máquina de propaganda o divulgasse como algo “original”. Também já existiam grandes fortunas e agiotas, cujos registros são confiáveis e alguns bastante precisos, pelo menos desde Crasso – “o homem mais rico da História” – que viveu um século antes da chamada era cristã, nos últimos dias da República Romana.

Entretanto, ainda não havia monopólios – nem da fé nem do capital. Até que o Estado Romano adotasse o cristianismo como sua religião oficial, quatro décadas após a morte do mítico Constantino I (que, ao contrário do que muitos pensam, apenas o havia “descriminalizado”). Na verdade, o “mérito” da oficialização coube ao imperador Teodósio I, através do seu tristemente célebre e perigosamente contraditório Édito de Tessalônica, de 27 de fevereiro de 380, do qual basta reproduzir o início e o fim (como a gênese do que se seguiria):

“É nosso desejo que todas as Nações que estão submetidas à nossa clemência e moderação [os grifos são meus], devem continuar na profissão dessa religião que foi transmitida aos romanos pelo divino Apóstolo Pedro (…)”. Em relação aos que foram “marcados com o ignominioso nome de hereges”, finaliza o monarca: “Eles sofrerão em primeiro lugar a repreensão da condenação divina e, em segundo lugar, o castigo de nossa autoridade, que de acordo com o desejo dos Céus decidirá infligir-lhes.”

No entanto, o relativamente pacífico Teodósio (quase a antítese de Constantino) subestimou esse profético castigo, ao longo do próximo milênio e meio de perseguições aos “hereges”. Ainda nos dias de hoje, não bastassem os cegos para a própria condição de herdeiros do velho monopólio da fé-cega, há também os céticos quanto ao monopólio do capital.

Quanto à transição de poderes, analogamente, os sofistas em geral (cristãos ou não) insistem que os poderes eclesiásticos sempre conviveram em paralelo com os capitalistas, mesmo durante a supremacia da Igreja. Alguns argumentam, com exemplos concretos, que grandes fortunas permaneceram em mãos de financistas privados (inclusive judeus); e acrescentam que todos os poderes se submetiam à suprema “autoridade política” dos imperadores e monarcas medievais.

Monopólio

Com efeito, os sofismas (tal como os dogmas e os programas de televisão), de tanto que são repetidos, acabam por adquirir alguma verossimilhança. Mas também podem ruir tão subitamente quanto o poder dos próprios governantes. Antes de entrar na política, porém, convém desmontar as falácias a partir da etimologia de ‘monopólio’ – domínio ou controle exclusivo de algo.

Essa “exclusividade” (assim como os sofismas), no entanto, nem sempre é o que aparenta ser. E pode até se tornar invisível, como os casos que analisamos: ora apenas dissimulados, ora materializados em ‘sub-monopólios’ ou ‘oligopólios’ – da fé ou do capital, ainda que estes possam parecer abstratos e intangíveis (ou virtuais).

Muitos questionam, por exemplo, se a Rede Globo seria um monopólio, um vez que coexiste com outras emissoras. Todas, por sua parte, cooperantes e igualmente convenientes à imagem ficcional de uma “democracia da informação”, com que se pretende iludir os brasileiros.

Na verdade, em que pesem os esforços de uma efetiva cooperativa da desinformação, já ninguém discute que uma única emissora familiar tem o poder de dar não só a palavra final nos temas nacionais (militares e jurídicos incluídos), como também de expelir quem se atreva a ameaçar a supremacia global no “mercado audiovisual” (mais uma ficção criada pela própria cooperativa).

Da mesma “forma” (mais ou menos visível), houve sempre, na História da Política, um ‘agente supremo’ a determinar quem, ou o que, ocuparia o poder oficial. Via de regra, antes dos monopólios que investigamos, a liderança política e o poder em si eram exercidos pelos exércitos, e na pessoa de seus comandantes. Não por acaso, os grandes reis eram guerreiros, e vice-versa: não raro os grandes guerreiros tornavam-se reis.

Em última análise, as forças militares eram as únicas de fato organizadas (ainda que brutas). Por outro lado, não menos evidente, seria impróprio considerar o militarismo em si como um monopólio, na medida em que os exércitos eram múltiplos e pulverizados entre as distintas nações. Assim como os respectivos deuses e riquezas materiais.

Portanto, até o advento do cristianismo, os conceitos de ‘exclusividade’ – religiosa ou econômica – eram “igualmente distintos”, sem um agente supremo universal. A honrosa exceção (ainda que de pouca significação na altura) era a própria matriz histórica do cristianismo: o autêntico monoteísmo judaico, no qual surgiu o filósofo cuja biografia e obra, por ironia, foram logo manipuladas pelo politeísmo dos gregos (que haviam dominado o Oriente Médio).

Jesus “ressurgiu” assim no tal “cristo” (do grego khristós, ‘o ungido’), que afinal já não era judaico nem grego, nem ‘mono’ nem ‘poli’, mas o estranho teísmo cultuado até os nossos dias: no deus “único” (embora em três pessoas!), com sua semideusa-mãe-virgem e outras centenas de “subdeuses” (ou santos).

Com efeito, é de dar nó no cérebro de um monoteísta, mas era também a cara da saudosa Grécia. Como o imperador Adriano – um romano-helenista – se reconhecesse como herdeiro desta nobre civilização, sabe-se que simpatizou também com os cristãos. Compreensivelmente, porém, nunca seria capaz de reconhecer na nova seita qualquer semelhança com sua matriz judaica.

Ainda no segundo século, portanto, Adriano tampouco hesitou em massacrar os judeus e dispersá-los por todo o Império. Prática perpetuada por seus sucessores – já cristãos – com maior ou menor intensidade, até a “Santa” Inquisição (na verdade, até o nazismo, também oficialmente cristão). Ao povo judeu, só restou especializar-se em acumular capitais, para sobreviver aos períodos mais sangrentos da intolerância cristã.

Sofismas e Verdades

Sintetizo a longa História nas respostas (negativas) que faltaram ser dadas aos sofistas: os banqueiros judeus não financiaram os reis cristãos porque fossem ricos ou generosos; nem foram poupados porque esses reis fossem generosos, ou porque muitos de fato não eram ricos; senão porque ninguém era ousado o bastante para desafiar a vontade da Igreja – por sua parte, ora mais rica, ora mais generosa, segundo suas necessidades financeiras.

À medida que o Ocidente mergulhava nas trevas da razão, os monarcas cristãos, com seus exércitos e súditos (judeus ou não), e respectivas fortunas ou misérias, estavam igualmente submetidos ao monopólio da fé cristã sobre todos os destinos – da humanidade e dos próprios reis, cada vez mais obrigados a cultuar (ou a odiar, no caso dos muçulmanos) o macabro signo de um cadáver pregado à cruz.

Desde sempre, portanto, o chamado “poder político” jamais existiu por si só, mas como o efeito visível das forças organizadas que o autorizam. Paradoxalmente talvez, a força bruta dos exércitos (a despeito de todas as estratégias e táticas sistematizadas ao longo dos tempos) nunca seria mais poderosa do que as forças racionais e emocionais do espírito humano – ora educadas para o bem, ora manipuladas para o mal.

Seja como for, o cristianismo só poderia triunfar como poder supremo enquanto não lhe retirassem essa primazia. E, por definição, jamais poderia coexistir “em paralelo” com outro monopólio. Por conseguinte, só haveria duas hipóteses para o que chamo de “troca da guarda”: uma improvável guerra (“fratricida”, entre o cristianismo e seu sucessor) ou o definhamento da “vitalidade cristã”, com a transferência natural de sua influência ao “gêmeo ideológico” – o capitalismo.

As provas concretas dessa transição temporal serão “vistas” – literalmente, a partir do Renascimento – quando os próprios fanatismos se puseram ao serviço do capital transnacional (imprescindível financiador de suas imagens artísticas). Assim como já se vê que o mundo vive, desde o século passado, sob o triunfo absoluto do capital sobre a fé.

Porém, entre o princípio e o fim do processo sucessório, não precisaremos sequer voltar aos dogmas cristãos para identificar a estupidez intelectual, ou a insatisfação emocional, de pertencer a qualquer seita supremacista, de qualquer tempo e de qualquer natureza (religiosa, étnica, econômica, etc.)

Mas para quem ainda supõe que a dinâmica histórica dos monopólios seja “invisível”, o Brasil já se encarrega de exibir ao mundo (quase como um anátema histórico) o estágio mais “avançado” de letalidade do triplo consórcio – entre o capitalismo, o ilusionismo, e os demais fanatismos. Para os espíritos mais lúcidos, somente o que é visível – nas velhas imagens cristãs ou nas modernas telenovelas – já será o suficiente para evidenciar as fórmulas “globais” de distração das mentes.

No Brasil dos “mitos”, conquanto os fascistas e fundamentalistas não reconheçam os danos individuais – perfeitamente visíveis na sua própria cegueira fanática – bastaria observá-los no plano social. Onde as imagens já se revelam não menos odiosas, aos olhos do mundo: na espoliação material da nação, na humilhação de seu povo e, sobretudo, na perseguição ao mais notável de seus cidadãos – precisamente porque o Lula não reza pela cartilha dos fanatismos nem das ambições desvairadas.

 


 

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