Por Wilson Solon.

Interrompi nossa investigação na gênese das novas “febres amarelas” urbanas que regressaram ao país. Onde a euforia e o histrionismo descontrolados dos coxinhas, no entanto, se revelaram sintomas fugazes, que apenas antecipavam a fase seguinte da epidemia: a parálise cerebral e a silenciosa vergonha, pelo próprio comportamento.
Sob o mesmo silêncio, porém, observamos a mutação que resultou na variante mais ameaçadora da doença: a lulofobia do Judiciário, que de fato exige uma observação mais atenta, pelos altos riscos de contágio. Agora, não só entre as elites e os pobres de Direita, mas também entre os cérebros considerados imunes, pelo conhecimento do Direito.
E foram estes que coordenaram as “vacinações a jato” – sob a direção artística da Globo – destinadas a imunizar a população contra o “mal da esquerda”. Curiosamente, os heróis de terno e toga acabaram por provocar as reações contrárias: de um lado, o povo desenvolveu anticorpos contra a nova fórmula milagrosa de “justiça social”; do outro lado, a volúpia saneadora da moral revelou-se o sintoma mais explícito da própria contaminação.
Apesar dos enganos e das evidências, tão primários quanto os já habituais nas novelas da Globo (ou talvez pelo próprio hábito de assisti-las em excesso), muitos tardaram a distinguir os heróis e os bandidos sob os respectivos figurinos. Hoje, porém, somente os intelectos mais ingênuos ainda confiam que as instâncias superiores do Judiciário não tenham sido igualmente contaminadas.
Outros, não menos distraídos, ainda querem acreditar que a insanidade já se exauriu no próprio exibicionismo midiático de alguns juízes de primeiro e segundo graus: falo, “em tese” (ipsis litteris), das estapafúrdias inovações jurídicas que não emergem das leis, mas dessas mesmas mentes messiânicas; e, na prática, das (hiper)exposições orais de suas teses surreais – como se viu no caso do Lula.
Mas falo, sobretudo, do gênero de espetáculos cuja estreia nacional já ocorrera em Curitiba, e seria consagrado pelos outros três justiceiros venais de Porto Alegre, também dispostos a dar voz e imagem à própria pusilanimidade. Embora sem conseguir ocultar um maior ou menor constrangimento, análogo ao dos canastrões vaidosos, que recitam textos verborrágicos, nos quais nem eles mesmos acreditam, para serem aplaudidos por plateias que tampouco compreendem o que ouvem.
Em termos mais políticos, mas não menos paradoxais, assistimos ao extermínio de todos os paradigmas temporais e espaciais até então conhecidos, na realidade jurídica. No tempo, tais arremedos de “sentenças judiciais” denunciam somente os próprios desejos inconfessáveis: de uma premeditada condenação política e, ao mesmo tempo, de uma soberba premonição do “melhor futuro” para o País. Em suma, “virtuais” projeções das próprias psicopatias odiosas.
No espaço físico, analogamente, nossas divindades judiciárias revelaram ainda sua douta onipotência para estabelecer a nova realidade dos “fatos”: ora na extensão de seus horizontes jurisdicionais até onde queiram enxergar o “domínio do fato”; ora na revogação das configurações anteriores de um crime (provas materiais, documentos, registros em cartório, contas no exterior, malas de dinheiro, vídeos e gravações), todas reduzidas à inovadora definição de “propriedade de fato”.
Entretanto, na realidade material, nem a arrogância corporativa nem a unção divina são capazes de vislumbrar com nitidez o que se encontra além dos próprios guetos – sejam pobres, sejam nobres. Volto, a propósito, aos demais fios soltos (nos presídios, nas favelas, nas igrejas neopentecostais), referidos no capítulo anterior. Mas falo agora dos mais nobres.
Nos tribunais superiores, a mera cumplicidade inoperante com o golpe, não obstante, pode ser outro detonador explosivo das energias emocionais ainda dispersas, e aparentemente caóticas. Por exemplo, se corroboram a fraude eleitoral das elites previamente derrotadas, em um pleito democrático (pela quinta vez consecutiva). Ou se autorizam uma desastrosa prisão do Lula.
Nesses casos, entrará em cena o único fator que não pode ser comparado a mais um fio desencapado, mas antes, para o bem ou para o mal, a uma inundação: as paixões das massas. Com efeito, sabemos que as águas provocam estragos imprevisíveis, mas são também um excelente condutor de energia.
Humilhar uma nação inteira e seu maior símbolo de dignidade diante do mundo – goste-se ou não dele, ou do mundo – já foi o bastante para estarrecer, desconstruir, mas afinal reorganizar, em grande medida, o território ideológico das esquerdas.
E não por acaso, apesar de seus astuciosos ardis, a pitoresca inteligência da direita (salvo a extrema, que carece de alguma) percorreu o caminho inverso: triunfou com o golpe, desorganizou-se ideologicamente e pulverizou-se aos olhos do povo. Mas jamais se estarreceu com os próprios crimes. E sabemos que não vão parar de cometê-los.
Contudo, já não falamos de ideologias ou geometria política, nem de um punhado de intelectos privilegiados que as conhecem, no imenso eleitorado brasileiro. Reitero, isso sim, os dois níveis mencionados – espiritual e material – do mesmo conceito de ‘guerra civil’. Nos espíritos, onde ela já está em curso, subestimar as emoções que não se veem na matéria pode ser o erro fatal da razão.
Em palavras, imagens e emoções mais concretas, calar em vida o maior representante da cidadania brasileira não é só uma injustiça com todos os cidadãos, mas uma declaração de guerra aos espíritos democráticos. Impossível, portanto, profetizar de onde partirá o primeiro tiro. Este, a rigor, já foi disparado, oficialmente, com o impeachment de Dilma.
E atrás deste vieram os demais, cujas estatísticas não são vistas, no entanto, porque certas retinas já estão acostumadas às violências físicas, de traficantes e policiais, em presídios e favelas; ou provocadas por violadores de mulheres, por invasores de reservas indígenas, por fanáticos religiosos e pelos fascistas em geral, contra outras minorias.
Nessa “matéria”, de fato tudo segue normal. Ou quase, depois do golpe militar no Rio de Janeiro. Ou nem tanto, mesmo para os “padrões aceitáveis” pelas elites, como comprovam os índices da efetiva guerra civil no estado, da qual sou testemunha ocular.
Mas para os que insistem em dissociar a “criminalidade dos pobres” dos crimes financeiros ou dos peculatos (os cometidos por funcionários públicos), basta observá-los a partir do desmonte da maior indústria nacional – a Petrobrás – praticado por um juizinho (na minha juventude se diria ‘cafona’) de província, entre outros aliados locais do capital internacional.
A reduzida geografia e a demografia do Estado do Rio – primeiro produtor de petróleo e o segundo estado mais populoso do Brasil – tornam evidentes dois fenômenos sociais paralelos. No curto período de três anos, multidões de trabalhadores mais ou menos especializados, ou de empregados indiretos desta indústria, e suas respectivas famílias, foram lançados ao desemprego e afluíram em massa à capital fluminense – como a nenhuma outra desde a crise.
Nessa perseguição a novas oportunidades de sobrevivência, afinal inexistentes, não incluo, obviamente, os assaltos à mão armada. Mas sim a imensa pressão social que acabou por se materializar, inevitavelmente, sobre as centenas de comunidades cariocas (ou as 763 favelas “oficiais”, segundo o Censo de 2010) que já viviam pressionadas ao limite de suas possibilidades. E cujos membros mais frágeis, sobretudo os mais jovens e os negros, foram os primeiros a serem expelidos da cidadania e da legalidade (que, a rigor, poucos conheciam).
Paradoxalmente, em sua cegueira seletiva, os capitalistas, embora os maiores especialistas em estatísticas, insistem em ignorar as duas mais evidentes, não só por serem inversamente proporcionais, mas por manterem uma perfeita correspondência, ano a ano, desde o golpe: de um lado, a queda vertiginosa do emprego, de outro, o aumento assustador da violência. Em tal medida que nem as Forças Armadas foram capazes de contê-la; nem a Globo, de escondê-la.
Doravante, porém, o que ficará cada vez mais nítido será a ousadia dos verdadeiros espíritos selvagens que obsidiam a nação. Nos primeiros estágios da aludida patologia do Judiciário, as preocupações dos achacadores “oficiais” do Brasil ainda se dividiam entre ocultar as provas de seus crimes ou dar-lhes uma aparência de legalidade; e os brasileiros, compreensivelmente, entre a confiança cega e o benefício da dúvida, face aos desmandos de Sérgio Moro et caterva.
Na fase atual da epidemia, no entanto, fica cada vez mais claro, para a maioria da população, que a longa hibernação do STF, TSE, STJ e congêneres – durante um Golpe de Estado – jamais representou uma postura asséptica, terapêutica, nem sequer preventiva, mas era já o estágio “supremo” da contaminação.
De outro ponto de vista, foi possível identificar também o sintoma mais degradante desses “guardiões da legalidade”: delegar o trabalho sujo aos sicários das instâncias inferiores (em todos os sentidos), como se assim vissem preservada a própria reputação. Convém diagnosticar, portanto, essa até então insuspeitável miopia da “alta magistratura”.
Uma vez “legalizado” o golpe, tudo talvez voltasse à “normalidade”: à esquerda, os pudores maníaco-depressivos (desde o denominado Mensalão, não menos dominado pelo fato); à direita, o despudor habitual, mas absoluto, a partir do golpe, para delinquir livremente. Ocorre que, em seguida, os delinquentes não contavam enfrentar o único cidadão cujo currículo talvez até permitisse (como de fato se viu) uma nova subversão das leis escritas. Mas não das leis matemáticas.
Pois ainda que pesem, em um dos pratos da balança, todos os equívocos relativos do Lula, no outro prato, em valores absolutos, ninguém possui um saldo maior de realizações sociais. Pode-se discutir inclusive a validade de suas obras; ou de outras, em relação à dele. Mas não o contrário, quando um conteúdo é maior do que um “continente” (neste caso, também no sentido geográfico).
E ao contrário do que supõe, por exemplo, a Senhora Cármen Lúcia, a mais graduada autoridade ainda sobrevivente à epidemia (conquanto moribunda), não seria possível “apequenar”, na própria régua, o que esta já dimensionou como o legado mais excepcional deixado por um brasileiro, na História.
Análogo, pelo lado obscuro da força, ao que um (assim batizado pelas massas) Vampiro Neoliberalista pode deixar em seu currículo: uma vingativa, oportunista, discriminatória e potencialmente sanguinária (como lhe compete) interferência na dinâmica “marcial” carioca. Aqui, não só a temperatura é mais alta como o buraco é mais embaixo.
Há de ressoar pelo Brasil. Portanto, seja pelo senso comum, seja pela matemática, continuarei a analisar a guerra civil sob perspectivas mais inteligíveis e didáticas do que os espasmos mentais de representantes, ou defensores, dos retrocessos. Todos, ademais, no limite de sua agonia moral.
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