9 – SOB O PONTO DE VISTA DA VOZ

Por Wilson Solon.

O GOLPE

Até aqui, se não pretendi justificar (mas apenas não ocultar) as minhas posturas profissionais e pessoais, assumo com o leitor o compromisso de esgotar as autorreferências neste depoimento, para prosseguir nas análises dos temas que tenham relevância nacional e universal.

Assim como “tratamos” da esquizofrenia global, embora sem esgotá-la (pelo excesso de motivos óbvios), já referi igualmente a minha (in)cômoda afonia, sem tampouco revelar a melhor forma de tratá-la (como o faço agora). Na verdade, ainda faltava perceber em que medida o discurso da Globo e o meu silêncio (e de quase toda a população) se vinculavam, involuntariamente, para que a ruptura fosse efetiva.

No meu caso, a súbita paralisia intelectual pós-golpe resultava de uma dupla negação: por mais de três décadas, recusei-me conscientemente a ser cúmplice das imagens que atentassem contra os valores democráticos (de qualquer dos países em que trabalhei e vivi); inconscientemente, porém, recusei-me a “revê-las” com o mesmo senso crítico, depois do recente atentado à democracia.

Admito que busquei legitimar a apatia sob o argumento da (falsa) modéstia. Afinal, quem se interessaria pelo que pensa um cineasta há muito (auto)silenciado acerca dos arquitetos do golpe? Além disso, apenas mais um representante de uma profissão já tão desprestigiada no Brasil.

As contradições deste silogismo deram-me o contragolpe final, porque negavam as próprias premissas (já comprovadas). Nas desagregações sociais extremas – catástrofes naturais, guerras, epidemias, ou golpes de estado – só permanece em estado de inércia quem igualmente se encontra em algum dos extremos: da fraqueza, da força bruta, ou da conivência egoísta.

Diante de um crime, por exemplo, à margem das formalidades legais, nenhuma testemunha ocular (exceto os possíveis criminosos) reivindicaria o direito de permanecer calado, em prejuízo do seu dever de testemunhar. Analogamente, nas lutas contra as injustiças sociais, as formas particulares de protesto – escritas, faladas, ou mesmo caladas – importam menos do que o legítimo direito de protestar.

Os respectivos sons

Em outras palavras (e nas suas manifestações mais genuínas), para além dos aspectos sonoros ou silenciosos, os conteúdos morais se sobrepõem naturalmente às formas imprecisas. Quando estas são espontâneas, é claro, diferentemente dos obscuros patrocínios da direita capitalista – à mídia corporativa e aos grupos fascistoides (tipo MBL, Vem Pra Rua, etc.), com suas respectivas imagens manipuladas.

Já nas manifestações da esquerda (via de regra, descapitalizada), se não dispensaríamos a presença do mais humilde militante ou de um único estudante, nem desprezaríamos as experiências de vida e o vigor de um camponês ou de um operário, ao fim e ao cabo, como não perceber minha contradição essencial? Como me orgulhar de minha postura e ideologia incorruptíveis e, ao mesmo tempo, me sentir vítima de uma “humildade” paralisante?

Ademais, no meu “caso” com o sinistro monopólio audiovisual, havia a culposa sensação de sonegar um testemunho literalmente “ocular”, do profissional especializado na psicologia dos crimes em curso. Entretanto, os criminosos “capturados” pelo olhar foram apenas condenados ao olvido, pela memória, sem nenhum recurso de minha parte às instâncias superiores da consciência.

Quando enfim decidi “psicanalizar-me” (em compulsório silêncio), identifiquei a contraditória mescla de repulsão assumida e fixação inconsciente pela Globo. Assim retrato mais um ponto de vista – da mesma esquizofrenia social – embora a minha (a)versão pessoal fosse a antítese do fascínio e da submissão acrítica da maioria. Mas também pode ser útil na busca dos antídotos contra uma “epidemia global” (que de fato atinge muito mais gente).

Ruídos e imagens

Começo e termino pelo que parece óbvio nas imagens televisivas: vê-las, ainda que sob um olhar crítico, provavelmente acrescentará muito pouco ao que pode ser encontrado em outras fontes mais confiáveis (como a internet, por exemplo); mas não “consumi-las” em excesso, seguramente nos poupará de perturbações, desilusões e indignações proporcionais.

Particularmente no meu ofício, nunca ter feito nada como cúmplice dos delitos e “desvios oculares”, com efeito, foi uma decisão libertária. Após o golpe, porém, não fazer nada (nem sequer um depoimento) significaria tornar-me mais um refém – por consentimento mútuo – e conceder ainda mais espaço aos falsários e falastrões compulsivos.

E mesmo que não houvesse qualquer razão filosófica para protestar contra esses atentados aos ouvidos e retinas dos brasileiros, insisto que todos os atingidos por grosseiras inverdades deveriam depor pelas razões psíquicas; na pior das hipóteses, como um terapêutico desabafo (não por acaso, dou agora depoimentos em série).

Já como “perito” em imagens públicas, somente descrevo os limites alcançados pelo olhar e o que deles emerge de real. Embora, como testemunha ocular, também seja obrigado a denunciar o que vejo de irreal, ou ficcional, mais além do que deveria emergir dos estreitos limites das telas de televisão. E sem cometer as mesmas fraudes e crimes de lesa-pátria.

Portanto, asseguro que o Brasil e suas crises surrealistas não possuem, definitivamente, as dimensões nem os contornos estabelecidos nas tendenciosas “radiografias” da Globo; onde os bastidores de sua própria realidade nunca são mostrados e, ironicamente, suas ficções parecem cada vez mais “verossímeis”.

Na flexível “democracia global”, seus atores (da ficção ou do jornalismo) seguem a mesma direção seletiva, com as nuances próprias das respectivas “realidades”: os tipos “primitivos” – pretos, pobres e outras “minorias” (que não raro são amplas maiorias da população) – de fato ocupam os espaços que lhes cabem, como personagens secundários, figurantes ou delinquentes, como determina a ‘política das novelas’.

E vice-versa, nas ‘novelas da política’: os delinquentes mais primitivos tornam-se respeitáveis protagonistas da vida nacional (incluído um presidente cuja maquiagem televisiva se confunde com a própria cara de pau). Mas nem assim eles deixam de ser figurantes, nesse Brasil – elitista, odioso e preconceituoso – que “você só vê nas telas da Globo” (como ela mesma admite).

Na “direção” inversa, adotada nestes depoimentos, para que a voz e as palavras do depoente não ultrapassassem os limites adequados aos desabafos e denúncias, também me obriguei a revelar meus próprios paradigmas de observação (mais além da eventual timidez e aquém do exibicionismo).

Por dever de ofício, continuarei a perseguir o mesmo equilíbrio, nos próximos temas igualmente polêmicos que abordaremos – ideologia e corrupção. Desde logo, deixo registrado que, assim como já não tenho interesse pessoal por nenhuma emissora de televisão, tampouco seria movido por um mero prazer terrorista de destruí-las.

E, ao contrário delas, somente continuarei a dividir (com os leitores mais resilientes) as convicções e as provas – filosóficas – de que a Rede Globo não deveria existir, em uma verdadeira democracia.

 


 

ANTERIOR: 8 – SOB O PONTO DE VISTA DO SILÊNCIO

PRÓXIMO: 10 – SOB O PONTO DE VISTA HISTÓRICO

2 comentários em “9 – SOB O PONTO DE VISTA DA VOZ

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.