Por Wilson Solon.
Nem todos os golpes – físicos ou morais – permitem à vítima perceber uma dor imediata, ainda que possam deixar sequelas profundas, não raro fatais. Um golpe de estado, portanto, exige vários níveis de reflexão, individuais e coletivos, acerca da medida em que cada cidadão adquire, ou não, a consciência de ter sido golpeado no que possui de mais essencial – a própria cidadania.
Contudo, ou como tudo neste País – tão gigantesco quanto insólito – nada seria diferente do que já nos habituamos a ver nas novelas. Por exigência deste gênero de narrativa, a realidade precisa ser proporcionalmente adulterada e ampliada, no espaço e no tempo: os grandes vilões devem se fingir de inocentes, desde o primeiro capítulo, para que os inocentes possam sofrer amargamente, até o último.
Não por acaso, foi como a Globo tramou o seu golpe midiático. Inadvertidamente, porém, também ela (assim como seus personagens irreais convertidos em políticos reais, e vice-versa) passou a acreditar nesses enredos fictícios e a delirar com o próprio “gigantismo”. Afinal distraiu-se do Brasil, que não cabe, pela dimensão e diversidade, nos enredos insólitos de suas telenovelas.
Neste gênero de ficção, quando após um ano inteiro, finalmente caem as máscaras para o público, todas as expectativas são satisfeitas de um só “golpe” – as punições desejadas, o prazer da vingança, a desmoralização dos vilões (e dos espectadores que os viam como heróis). Mas também se revelam fugazes, como a própria lembrança de um último capítulo de novela, para a qual já não haverá um amanhã.
Na realidade objetiva, ao contrário, existem sempre os dias seguintes. E cada dia, no Brasil, só não é mais imprevisível, por exemplo, do que a longa noite de sono dos coxinhas: que foram dormir com a “convicção” de que Dilma e Lula eram bandidos “virtualmente” condenados; e acordaram, tempos depois, sem nenhuma evidência que desabone a dignidade de ambos. Mas com inúmeras provas contra os seus próprios “líderes” – de FHC a Aécio e a Moro.
A começar pelo candidato presidencial já derrotado nas urnas, o probo e pobre menino das Neves – um “neobandido” que só roubou agora para pagar advogados e provar que nunca roubara! Com efeito, grandes sofistas custam caro. No entanto, tudo seria ainda mais traumático para os seus admiradores “legítimos” (bem ou mal-intencionados), que bebem tardiamente do próprio veneno – o velho “denuncismo global” contra vilões previamente selecionados.
Agora, no entanto, já não é preciso citar o Lula, ou tripudiar sobre os efetivos golpistas, nem sequer culpar os coxinhas “iludidos”, para diagnosticar suas dores. E sempre podemos utilizá-los, didaticamente, para ilustrar as distinções entre essas dores mais ou menos tardias – ora porque a consciência não as detectara antes, ora porque a inteligência não distinguira os inocentes dos dissimulados. Embora, desde o primeiro momento, tudo e todos já estivessem ao alcance das vistas e dos diagnósticos.
A simbiose da direita
Para os desiludidos, as dores de consciência (ou “de corno”), cedo ou tarde acabam por eclodir de maneira semelhante. O que varia, segundo as ideologias, é a gestão individual (da intensidade e, por consequência, da duração) dessas “dores guardadas”: desde um simples constrangimento, por defender “valores” equivocados, até os sucessivos graus de teimosia, em reconhecer as causas do equívoco.
Em grau extremo, por evidente, há os grandes corruptos, que embora pareçam não ter sequer uma consciência, ao contrário, já são presas dela – como os grandes toxicômanos – na medida em que desconhecem a plena satisfação de seus desejos e ainda menos o genuíno prazer do respeito ao próximo (e a si mesmos).
Trata-se de um vasto espectro de seres mais ou menos egoístas: dos inocentes úteis (também chamados “pobres de direita”) às alianças entre os especuladores financeiros e excitados políticos, cujas “carreiras elogiáveis” se resumem em “aspirar” tudo o que possam de um tal “mercado”. Em contrapartida (segundo os dogmas neoliberais), firmam o “compromisso” de favorecê-lo, através das instituições públicas.
Nessa simbiose institucional e estados alterados de consciências individuais, até a precisão matemática (assim como a jurídica) adquire uma espantosa flexibilidade. Por exemplo, através dos mesmos orçamentos públicos, vistos pelas mesmas pessoas ora como “perfeitamente flexíveis”, quando se trata de aumentar os ganhos dos privilegiados, ora “irremediavelmente deficitários”, como justificativa para cobrar os custos de quem produz e fornece as riquezas ao mercado – os trabalhadores.
A relatividade dessas mentes assemelha-se (em seus próprios termos) a uma joint venture financeiramente absurda, entre as perdas mais desastrosas para um indivíduo: do caráter, da vergonha e da própria humanidade. Em termos psíquicos, portanto, para o tão explícito ‘cinismo dos canalhas’, ou para melhor focar suas carências patogênicas, prefiro a imagem singela da “dor guardada”.
Ainda que sejam tumores deliberadamente ignorados. Até a morte. Ou até que a mente predatória decida evitar as metástases e autorize a intervenção da consciência; cuja gestão se torna tão mais eficaz quanto mais curtos sejam os prazos dessa autocrítica – como nas operações financeiras. Do contrário, os predadores sociais correrão o risco de enfrentar outras operações tardias – como as cirúrgicas, ou as policiais.
Lamentavelmente, porém, por algum efeito desconhecido das leis biológicas (ou da patologia que estudamos), sobre a consciência, os corruptos arrependidos ainda representam uma estatística desprezível na espécie humana; assim como a dos condenados e punidos pelas próprias leis humanas. Estas, ao menos no Brasil, só valem efetivamente para os pobres ou para os inocentes.
Ainda assim, por força de outras leis – da natureza ou da estatística – quase todos os usurpadores do alheio desaparecem tal como as fortunas desviadas: em melancólico silêncio, sem mão que os retenha, nem os afague. Não raro, essas mentes enfermas apodrecem fisicamente, como os frutos desprezados em alguma fruteira design, inspirada nos cenários globais. Como de resto é a simbiótica Rede Globo quem inspira e estimula todo o círculo literalmente “vicioso”, dos apetites insaciáveis da direita.
A estética da esquerda
Já as dores da esquerda têm menos glamour. E muito mais frequência. Via de regra, são arranhões, contusões, fraturas expostas; ou dores de estômago pelo que comem (ou deixam de comer). Não obstante, os acidentes físicos, quando não matam, são os mais pedagógicos, pois nos permitem a observação teórica e o aprendizado prático, já que todos os envolvidos obedecem às mesmas leis físicas – exatas e comprováveis.
Em outras palavras, nos acidentes do dia a dia, as causas e os efeitos revelam-se tão sábios e imediatos que, no mesmo ato, já adquirimos a consciência de nossas ações e reações; responsabilidades, imbecilidades e culpas; mas também as redimimos com a mesma brevidade, através das próprias dores. Ainda assim, as dores acidentais não torturam ninguém por tanto tempo, como os tumores.
Na pior das hipóteses, os cidadãos de esquerda – seja por consistência ideológica, seja por experiência prática – também podem contar com o alento de uma rede de solidariedade bem mais extensa, por exemplo, do que todas as sonoras campanhas “sociais” da Rede Globo – a rigor, autopromocionais e exploradoras da miséria alheia. Cujos caldeirões de emoções “premiadinhas” (premiadíssimas, só as delações) atraem as consciências hesitantes e dominam as mais anestesiáveis pelas demagogias.
Por outro lado, enquanto vigoram as leis democráticas (apesar de imperfeitas), podemos tratar as posturas individuais, os conflitos ideológicos, ou as respectivas dores, com plena “liberdade de arbítrio” – não por acaso, a primeira vítima de um golpe de Estado, sempre arbitrário, ainda que dissimulado por grosseiras manipulações das leis.
Mas até o golpe, muitos de fato não nos preocupamos com adversários conhecidos e já “inofensivos”. Como era a Globo para mim (que já me habituara a desprezá-la em silêncio). Entretanto, a nova “novela global” descambava para um grotesco culebrón mexicano, com assaltantes notórios (e alguns narcos) a invadirem nossas casas e tomarem como reféns um ou dois (ou 200 milhões) de moradores atônitos e perplexos.
Nessas circunstâncias, gritar ou não gritar de dor deixa de ser a questão central. Senão mais tarde, como a estratégia psicológica mais conveniente para lidar com cada bandido. Mas, sobretudo nos dois últimos anos, tentei não dissipar minhas energias mentais com o vasto elenco criminoso. E também por isso, vivi o período mais longo e mais próximo do que diagnostiquei como um estado depressivo, por já não conseguir focar a mente em nenhuma outra atividade criativa.
A inoperância intelectual se estendia à musculatura física, e vice-versa, sem que eu percebesse essa notória incongruência com as opções estruturais de minha vida adulta, face às depressões: as defesas filosóficas, as soluções práticas e a resistência física. E tampouco detectei outras causas interiores (psíquicas ou somáticas) que pudessem confirmar o diagnóstico. Obviamente, todas as razões involuntárias eram exteriores, e oriundas do mesmo trauma coletivo.
Ao meu redor, muita gente também se queixava de sintomas idênticos, sem identificar a sua origem, o que me afastava ainda mais de qualquer diálogo: com os golpeados conscientes, por desnecessário; com os que perderam a consciência, no próprio golpe, por inútil; e com os demais, que o justificavam, por ridículo. Assim concluí, egoística e equivocadamente, que o silêncio continuaria a ser a opção mais confortável.
Perplexidades globais
Mas algum drama silencioso de consciência ainda permanecia insolúvel. O ponto de inflexão da crise “pessoal” foi ter percebido o óbvio: nas perdas coletivas, nenhum ser humano – dotado de níveis mínimos de razão, emoção e sensibilidade – poderia ser preservado; pois além dos aspectos controversos, econômicos ou morais, falamos também de catástrofes materiais, que geram epidemias e mortes, a prazos mais longos.
Diante do caos, já não há padrões individuais nem “globais” de ruído ou de silêncio: alguns se calam e outros gritam; alguns, para salvar vidas, outros, para saqueá-las. Não obstante, quando se conhece o acidente ou a doença, as providências coletivas também podem ser mais ágeis, quer em favor da vida, quer contra os saques aos indefesos.
Em estados de choque coletivo, não deixa de ser um alento saber que todos revelam suas intenções mais profundas com nitidez. Nenhum soterrado grita de prazer nem se cala por mera timidez. E acima dos escombros, só ficam inertes os que perderam a vida, ou a consciência. De fato os saqueadores são também um caso patológico; cujo tratamento, porém, requer procedimentos e prazos imprevisíveis, como fora a perda da própria humanidade. Nas grandes tragédias, a urgência é preservar a vida humana.
No meu caso, a prioridade do intelecto (ainda que inoperante ou indignado) foi perceber que já não tratávamos dos buracos na estrada, mas de um dramático acidente de percurso – individual, social, humanitário, civilizatório. Paradoxalmente, ter visto o último estágio de desconstrução da nacionalidade brasileira também poderia representar o fim (pelo menos em tese) de qualquer depressão pessoal.
Na prática: onde todos obedecem às mesmas leis (naturais), quanto mais brutal for o choque tanto mais suas componentes – pessoais e coletivas, saudáveis ou enfermas – obedecem aos mesmos ciclos naturais; cujos procedimentos e prazos podem ser estimados pela razão e não só. Através das emoções também é possível diagnosticar uma epidemia de dimensão nacional (e, em larga medida, de natureza psíquica).
Os sintomas já não escolhem inimigos pessoais. Enfermos ou não, numa depressão social, somos todos vítimas. Seja por solidariedade humana, seja pela (inumana) solidão do egoísmo ou da indiferença às dores alheias. Mas se não somos egoístas, por que as minhas dores parecem tão intensas? Ou ainda, se não somos indiferentes, por que não quebrar o meu silêncio?
Na verdade, o “meu” currículo de diretor de bandidos, na ficção, era irrelevante diante da única pergunta possível, na vida real: o que seria meu, ou teu, ou deles, nas rupturas democráticas? Mas também nos golpes, em geral, a resposta pode ser o contrário do que nos fazem crer: quando passa a mandar quem tem a força, só deve obedecer quem igualmente perdeu o juízo.
Na lógica democrática, as hierarquias políticas se inspiram nas sábias Leis Naturais: sejam as cronológicas, que constroem os méritos profissionais, sejam as familiares (de qualquer natureza), que se baseiam no afeto e no respeito mútuos. As antíteses, por exemplo, das negociações trabalhistas com assaltantes “liberais”.
Submeter-se, às vezes, pode ser inevitável. Entretanto, a “obediência” torna-se um pleonasmo diante dos ditadores; e um paradoxo, em qualquer modalidade de ditadura, para quem supõe que obedecer seria uma forma de “preservar a própria vida”.
Somente se impedimos que os degenerados a governem. Quando o arbítrio deixa de ser livre para uma das partes – como nos golpes midiáticos e nas manipulações arbitrárias das leis – por definição e princípio (a rigor, pela falta de algum), já não há respeito pela vida, por sua preservação, pela liberdade de pensamento, pela sabedoria coletiva, nem pelos méritos individuais. Covardes e foras da lei só têm respeito pelo próprio medo de serem enfrentados. O que já depende de nós, cada um à sua maneira.
Diante do golpe, portanto, convinha investigar melhor a “minha” sacrossanta (até então) opção pelo silêncio. E até a “libertação” dos nossos espíritos – das dores, das garras e das imagens predatórias dos golpistas – eu de fato continuaria a observar a Globo com várias câmeras, tal como ela nos observa. Mas, ao contrário dela, prefiro dividir com outros seres pensantes todos os pontos de vista.
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