Por Wilson Solon.
Como antecipado no último depoimento, vou eliminando aos poucos uma eventual curiosidade do leitor acerca da trajetória profissional deste (ex-)diretor de televisão que, antes dos 50 anos (e ao longo da última década), renunciou ao atrativo universo dos “famosos” e, por conseguinte, à divulgação das próprias imagens e ideias.
Mas por que um cineasta que optou pelo ostracismo renunciaria agora à própria renúncia? E como esperar que volte a ser ouvido? Começo, portanto, pela retificação dos equívocos que podem ocorrer a todos – de uma estúpida celebridade televisiva aos lúcidos leitores anônimos que não me conheceram (ou já se esqueceram de mim).
A rigor, somente optei por ajustar o foco sobre imagens imprecisas – ora mal associadas, ora (literalmente) imaginárias – do chamado “meio artístico”, embora divulgadas como evidências de uma fervilhante convivência social e cultural (sobretudo quando em sintonia com o “circuito global”).
E antes mesmo de explicar a opção em si, pelo silêncio, saliento que não fui finalmente privado da visão (nem da lucidez do olhar) sobre as sociedades em que vivi, mas apenas dos incômodos e desilusões de conviver com egos desorientados pela miopia da fama. De outro ponto de vista, o silêncio até ampliou a capacidade de distinguir os míopes dos lúcidos, nas relações “anônimas” (que às vezes deixamos passar despercebidas).
Nesse vasto e impreciso território do anonimato, enfim, já compreendo inclusive a “lógica” oposta, dos que assumem estar “cagando” para qualquer opinião ou reflexão “fora da caixa” (ou de quadro, como prefiro) e se orgulham de engrossar o coro de “mitos” igualmente falastrões, porém ainda mais especializados em defecar em público.
Em qualquer dos casos, suponho que cada autor ou orador tenha motivações próprias para verbalizar seus pensamentos (e até para proferi-los sem pensar). Ou, ao contrário, talvez já não tenha intenção alguma de falar. Para quem de fato encontrou mais motivos para estar em silêncio, a comunicação em si passa a ser um luxo dispensável; e os interlocutores, tecnicamente supérfluos.
Ruídos e silêncios relativos
Diante de tantos violadores do conceito de ‘humanidade’ (e à deles próprios), entre outros arautos da destruição nacional, confesso que passou a prevalecer em mim (como em muitos brasileiros) a mesma falta de motivações para novos diálogos. Em outras palavras, vai que descubro se tratar de um ‘bolsominion’, ou de um ‘manifestoche’ (novas alcunhas para os já velhos coxinhas).
Minhas recíprocas permaneceram verdadeiras em relação aos eventuais leitores: não persigo likes nem a aprovação de ninguém, a rigor, nem mesmo leitores. Mas tampouco sou indiferente ao carinho, às sintonias da matéria e do espírito (em especial). Solenemente, respeito quem concorde, discorde, ou ignore as minhas ideias, mas antes, ignoro quem não as respeite.
Eis também a reciprocidade que se aplicava à Rede Globo, como instituição (não aos seus profissionais, meus antigos colegas), durante as décadas em que nos desprezamos ou ignoramos mútua e democraticamente. Ou enquanto vivíamos em democracia, e podíamos perder todo o respeito por essas “organizações” sem precisar desrespeitá-las em público.
Algo “virtualmente” impossível, a partir do golpe, quando a perda do respeito – pela cidadania e por cada cidadão – não só violou o direito ao silêncio (de uns poucos), como resultou nos sonoros escândalos nacionais, hoje conhecidos de todos.
Entretanto, os telespectadores mais atentos sabem que na realidade ocorreu o inverso: foram todos os abalos sísmicos da política – a partir dos movimentos de rua em 2013 – que resultaram das manipulações da Globo, ora apenas “dirigidas” por seus interesses econômicos, ora também “diretoras” das convicções políticas enfiadas goela abaixo da população.
Deu no que deu. Curiosamente, com a crescente percepção do caos “global” – político, jurídico, econômico, social e moral – essas diretrizes messiânicas e informações “luminosas”, com efeito, “revelam-se” inócuas, e cada vez mais conflitantes entre si. Embora para os crentes mais fanáticos, ainda pareçam tão redentoras quanto a “palavra de Deus” (disseminada pela emissora concorrente da Globo).
Por outro lado, a incredibilidade e a imprevisibilidade das imagens televisivas, nos tempos que correm, não as impedem de serem registros fidedignos do golpe; das primeiras fraudes aos derradeiros fracassos, políticos e econômicos. Todo esse “material” armazenado “nas nuvens”, por ironia, são evidências concretas à disposição dos futuros estudiosos da televisão (quando também eles forem mais independentes e menos míopes).
O único aspecto confortador dessas imagens é saber que todas trazem o logotipo da grande ideóloga política e porta-voz econômica da ruptura institucional. Assim, as relativizações do presente – as mentiras, desmentidos e mudanças de posição da Globo – não gerarão novas dúvidas, no futuro, quanto à sua autoria e direção dos espetáculos criminosos, contra a população e os patrimônios da nação brasileira.
Quanto ao passado, a propósito, convém sublinhar que a Globo não foi a primeira nem teve influência direta sobre a última de minhas renúncias profissionais (e às convivências “midiáticas”). Só depois de trabalhar por cinco anos em Portugal foi que resolvi deixar a direção de televisão (e o próprio país), antes de viver a segunda metade da última década na Espanha.
Nessa altura, já havia outras razões pessoais (desnecessárias aqui) tanto para novas mudanças quanto para não pensar mais em emissoras de televisão, e muito menos no longínquo Brasil. Ainda assim, admito que tampouco deixei de pensar, por um só dia, nas causas das narrativas manipuladas. E nas imagens que evidenciam, ora os graus individuais de miopia, ora as cegueiras coletivas.
Na “direção” inversa, todos os fatos deprimentes ou desastrosos vistos aqui (ou “revistos” com lentes alternativas), por este observador, são comprováveis e de conhecimento público; assim como minhas próprias experiências profissionais, apesar da imaterialidade de alguns registros. Não obstante, imagens podem ser mais consistentes, por exemplo, do que todas as provas apresentadas até hoje pela Globo e pelo judiciário contra o Lula.
Em suma, afastar-me das lentes e das câmeras (já estando por trás delas) não seria sequer uma renúncia, como a dele. Mas ainda que o fosse, em parte, penso que não foi nem será a última. Ao mesmo tempo, em nome da imparcialidade que falta à Globo, nenhum diretor consciente poderia negar essa fantasmagórica interferência na “visão” e na vida de todos brasileiros.
Luz e trevas absolutas
Para não descer (ainda) ao “breu das tocas”, como canta o Chico, da política ou da economia “globais” (onde, digo eu, se fabricam desde seleções de futebol a presidentes da República), comecemos nossa ‘optometria’ (a medição do campo de visão) pelo efervescente bazar cultural, com seus artigos e artistas de luxo, e respectivas obras de teatro, cinema, etc.
Nesse espaço a que muitos chamam “cultura”, é também a mesma emissora quem patrocina, censura ou vomita o que quer na nossa cara. Inclusive algumas produções admiráveis, admito. Com este artifício, o estética e o politicamente corretos funcionam como um contraponto “natural” ao próprio discurso – ultraliberal de direita – para legitimá-lo como “democrático”.
Dos discursos ficcionais à prática “pedagógica”, criou-se afinal o campus avançado (de concentração, seria o plano?), na metáfora de Projac conhecida como “República de Curitiba”. Onde bizarras interpretações – de delatores, delegados e dallagnois – se encarregaram de destruir reputações, para o “bem” (no sentido evangélico) ou para o mal, em todos os sentidos.
Não falo sequer dos critérios de “justiça” (já ambígua por si mesma), ali inexistentes, mas dos casos concretos de difamações e torturas – como o de Marisa Letícia e do reitor Cancellier – cujas mortes são emblemáticas das ambiguidades contidas nos modernos critérios da fama, mas nem sequer foram “vistas” na TV. Muito menos como assassinatos efetivos.
Ainda assim, tudo na Globo parece tão verossímil quanto os demais mitos divulgados ali: o “mercado”, templo sagrado de seus opinadores econômicos; a “normalidade democrática”, o mantra de seus políticos de estimação; e a própria pretensão de incluir no conceito de Cultura uma aberração – antinatural e anticultural – como um monopólio audiovisual de uma nação continental.
Quando a hipocrisia já indigesta ao estômago, ademais, patrocina uma flagrante violação da democracia, cada imagem é um atentado a todas as retinas. Ou de novo sob a minha “direção”: tal como ela, continuarei a retratar a Globo com várias câmeras; mas, ao contrário dela, para que algum ponto de vista possa revelar o tratamento mais adequado a cada miopia.
No próximo depoimento, acrescento ao foco a perspectiva do tempo e o distanciamento no espaço: o Brasil visto da Europa, em meados da década passada. A rigor, o mesmo país “emitia” duas imagens sobrepostas. O que chamei de optometria, portanto, já era também (ainda que só aos meus olhos) a “radiografia” de uma esquizofrenia global.
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